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Como os futuros livros de história lembrarão a guerra da Síria?

Omran Daqneesh,  menino sírio de 5 anos, após ataque no bairro Qaterji, na cidade de Aleppo - Reprodução - 19.ago.2016
Omran Daqneesh, menino sírio de 5 anos, após ataque no bairro Qaterji, na cidade de Aleppo Imagem: Reprodução - 19.ago.2016

23/10/2016 16h06

Recentemente, um parlamentar britânico comparou o bombardeio russo a um comboio da ONU na cidade de Aleppo, na Síria, aos ataques nazistas na Espanha durante os anos 1930.

Andrew Mitchell, do Partido Conservador, disse que a Rússia está matando civis na Síria da mesma maneira como a Alemanha nazista se comportou em Guernica durante a Guerra Civil espanhola, ataques que inspiraram o pintor Pablo Picasso a criar a obra Guernica.

A declaração foi recebida com controvérsia, mas, ao comparar dois momentos distintos da história, ensejou uma questão: como a guerra na Síria será descrita e contextualizada nas escolas no futuro?

Atualmente, aprendemos nas aulas de história que o assassinato do arquiduque Franz Ferdinand foi um dos gatilhos para a Primeira Guerra Mundial. E que a ascensão de Hitler ao poder contou com vários fatores, incluindo a situação econômica na Alemanha, assim como suas habilidades como orador público.

Com a ajuda de especialistas, fizemos algumas previsões sobre os tópicos que, que como os acima, serão cobrados dos estudantes nos próximos 50 anos.

O começo: a invasão ao Iraque em março de 2003

"Se eu estivesse dando uma aula, eu iria para março de 2003, quando Grã-Bretanha, Estados Unidos e outros países decidiram invadir o Iraque", diz o professor Tim Jacoby, especialista em conflitos e professor da Universidade de Manchester.

"Mas você também poderia argumentar que para entender o que aconteceu na Síria você precisa entender a decisão de Saddam Hussein de invadir o Kuwait em 1991. Ou você pode ir um pouco além", afirma.

Michael Stephens, pesquisador de Oriente Médio do Instituto Real de Serviços Unificados (Royal United Services Institute), um think tank de segurança, concorda que 2003 é um bom começo para entender a guerra na Síria, mas há também outras datas cruciais.

"Até 2001, as pessoas na Síria tinham apenas duas estações de TV, ambas controladas pelo Estado. Quando as pessoas tiveram acesso à internet, elas puderam se comunicar com o mundo todo e as pessoas foram incentivadas a querer mais para elas mesmas. A crise econômica de 2007-2008 teve um impacto econômico gigante no mundo árabe, o que levou à Primavera Árabe", explica.

Mais de mil diferentes grupos são contrários ao governo sírio

Michael Stephens e Tim Jacoby concordam com a alta probabilidade de que este será considerado um dos mais complexos conflitos em décadas, se não o mais complexo.

Alguns dos principais grupos atuando no conflito são:

- Presidente Bashar al-Assad, líder do governo sírio, e seus apoiadores;

- Rebeldes que se opõem à liderança de Assad, lutando contra o Exército do governo;

- Partidos políticos que dizem que Assad é responsável por fraudar as eleições, garantindo sua permanência no poder;

- O grupo extremista que se intitula Estado Islâmico, que usou a violência contra grupos como cristãos e Yazidis.

Segundo estimativas, existem mais de mil grupos diferentes se opondo ao governo desde que o conflito começou, com 100 mil soldados.

EUA, Rússia e Irã são alguns dos grandes jogadores internacionais

Esta é mais uma questão de "grande complexidade", segundo Jacoby. Segundo o especialista:

- A Rússia sempre foi uma aliada da Síria e continua a ser, principalmente porque ela continua a ser sua principal aliada no Oriente Médio;

- O Irã teve uma grande influência na região como consequência da invasão ao Iraque em 2003. São aliados próximos;

- Para a política americana, um grande elemento do envolvimento dos Estados Unidos na Síria é garantir a segurança de Israel, seu aliado próximo.

O chamado Estado Islâmico quer dissolver as fronteiras entre Síria e Iraque

"A invasão ao Iraque é a primeira vez em um bom tempo em que a coalizão internacional invadiu um país soberano e o subjugou a um período prolongado de ocupação", diz Jacoby.

"Desestabilizou muito os regimes tirânicos e despóticos que existiam na região há décadas. O conflito na Síria é um resultado direto dessa desestabilização, eu diria."

E nem todo mundo pensa que Iraque e Síria são duas nações separadas.

"Aquela fronteira que desenhamos no mapa entre esses povos nunca foi aceita na mente dessas pessoas", explica Jacoby.

"As pessoas que vivem no deserto e transpõem aquela fronteira são as mesmas. Então o que o Estado Islâmico quer de alguma maneira é dissolver aquela fronteira - e é exatamente isso o que eles fizeram."

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Entre 18 e 25 de setembro de 2016, sete áreas destruídas foram detectadas no bairro de Sakhour, Aleppo, Síria. Esta imagem de 25 de setembro mostra dois pontos com danos e prédios destruídos
Imagem: DigitalGlobe 2016 via Amnesty International

É difícil saber exatamente quantas pessoas morreram na Síria

"A conta de mortes no Iraque é apenas uma estimativa", diz Jacoby. "Comparado com o Vietnã, onde os corpos eram contados e as mortes publicadas, há pouquíssima informação."

Jacoby afirma que essa era uma "política deliberada" por parte da coalizão de governos como Estados Unidos. Um resultado, diz ele, é que o movimento antiguerra não tinha esses dados pra ajudar na sua causa.

O que nós sabemos é que milhões de pessoas deixaram a Síria durante os últimos anos como refugiadas.

29.fev.2016 - Imigrante observa acampamento em chamas na cidade Calais, na França. Um tribunal francês autorizou a retirada de centenas de imigrantes da cidade portuária. Os refugiados instalados na "selva", procedentes em sua maioria de Síria, Afeganistão e Sudão, querem viajar à Inglaterra e muitos tentam fazê-lo embarcando clandestinamente em caminhões que circulam entre os dois países  - Philippe Huguen/AFP  - Philippe Huguen/AFP
Imigrante observa acampamento em chamas
Imagem: Philippe Huguen/AFP

O número de refugiados varia muito

As redes sociais e a internet tiveram um papel importante em não apenas permitir uma experiência melhor de mundo às pessoas que estão dentro da Síria, mas também dar a elas uma plataforma para noticiar o que acontece em suas vidas.

"Da perspectiva do Oriente Médio, eu acho que a onda de debates nas redes sociais foi bastante polarizador", diz Stephens.

"É um pouco como quando Alan Kurdi (o menino de três anos na fotografia considerada hoje icônica) apareceu na praia. É mesmo necessário que uma criança seja levada pelo mar até uma praia para as pessoas se importarem?"

"Talvez a crise síria de refugiados tenha nos levado a pensar um pouco mais criticamente sobre nosso papel no resto do mundo", disse Jacoby.

Ele destaca que o número de refugiados sírios vivendo em diferentes países varia muito. "A Turquia por exemplo tem provavelmente três milhões de refugiados sírios", diz ele, comparando com os poucos milhares que vieram à Inglaterra.

"E depois de passar por todo aquele sofrimento e privação, eles serem submetidos ao racismo endêmico na Grã-Bretanha é absolutamente imperdoável", diz.

Michael Stephens acredita que esse será o conflito definitivo até a metade desse século, acrescentando: "pode ser tão importante quanto foi a Primeira Guerra". Ambos os especialistas preveem que o futuro será castigado pela forma como o conflito sírio tem ocorrido.

"Eu acho que permitir que milhares de homens, mulheres e crianças se afoguem no mar Mediterrâneo será visto como um dos maiores crimes do começo do século 21. É completamente escandaloso, acho que a história será extremamente crítica sobre nosso papel nisso, nossa capacidade de ignorar isso", diz Jacoby.

"Aprender a lições da história será dolorido para todos. Eu acho que todo mundo (do Irã aos Estados Unidos e Europa) terão que jogar as mãos para o alto e dizer que poderiam ter feito algo diferente. Do jeito que a região está, acho que a situação ficará pior antes de ficar melhor", completa Stephens.