Como a União Soviética influenciou o surgimento e a expansão do radicalismo islâmico
Com o triunfo da Revolução Russa em 1917, há cem anos, poucos aspectos da história do século 20 escaparam da influência da superpotência então nascida. O islã e as sociedades islâmicas não foram uma exceção.
No momento do colapso da União Soviética (URSS), no início dos anos 1990, cerca de 50 milhões de muçulmanos viviam ali - a quarta maior população islâmica do mundo na época.
Seis das quinze antigas repúblicas da URSS, concentradas na Ásia Central (Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Azerbaijão, Turcomenistão e Uzbequistão), eram de maioria muçulmana. Além disso, o islã também contou - e conta até hoje - com populações consideráveis de seguidores ??no Cáucaso, nos Urais e em outras regiões do país.
"Os muçulmanos foram centrais - ou até mais centrais - na história russa do que na Europa", afirmou à BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC) Timothy Nunan, professor do Centro de História Global da Universidade Livre de Berlim.
A Revolução Russa e a formação da URSS tiveram um impacto profundo no islã político e na expansão do radicalismo islâmico, dentro e fora das fronteiras soviéticas. Em alguns casos, de forma brutal. E a questão-chave aqui se resume a um país: o Afeganistão.
- 'Perdi meu emprego de 21 anos por postar uma foto no Facebook'
- Por que chegar cedo ou atrasado diz mais sobre sua personalidade do que você pensa
O impacto da invasão do Afeganistão
Para o professor Nunan, trata-se de uma questão repleta de nuances - é possível interpretar tanto que houve como que não houve uma influência de Moscou no mundo muçulmano.
"De uma maneira simples, eu diria que não houve. A União Soviética, desde suas origens, apoiou os movimentos anticoloniais e o que eles chamavam de anti-imperialistas. Os movimentos islâmicos raramente se encaixavam nessa ideia."
"No entanto, em meados da década de 1970 e 1980, a URSS se tornou objeto de ódio dos movimentos islâmicos em todo o mundo, especialmente como resultado da invasão e ocupação do Afeganistão. (O país) virou um ímã para os movimentos islâmicos dos anos 80", ressalta.
A invasão soviética do Afeganistão se deu em 1979, em apoio ao governo comunista que combatia guerrilhas islâmicas no país, por sua vez apoiadas pelos EUA.
Nunan aponta que, até então, a relação entre a URSS e o mundo islâmico era relativamente cordial e tinha sido marcada pela influência soviética sobre os movimentos de descolonização.
Alianças com o Iêmen do Sul - um Estado socialista próximo de Moscou que desapareceu em 1990 - e com a Síria pareciam demonstrar o sucesso da perspectiva soviética do socialismo no "Terceiro Mundo" e nas sociedades de maioria muçulmana.
Jihad contra a União Soviética
No entanto, os dez anos da guerra soviética no Afeganistão transformaram radicalmente essa imagem. Após a invasão, a guerrilha islâmica dos mujahedin ("combatentes" em árabe) recorreu à jihad (no contexto político, indica em árabe uma guerra pela fé contra os infieis). Moscou tornou-se seu principal inimigo.
"O Afeganistão se tornou naquele momento tanto a rota de um islã político mais global e quanto um lugar que acolheu o crescimento de movimentos islâmicos regionais, ganhando violência e instabilidade", diz Kathleen A. Collins, professora da Universidade de Minnesota.
"A Al-Qaeda também nasceu no contexto da guerra do Afeganistão, com a chegada dos jihadistas do Oriente Médio que surgiram nos ramos mais radicais da Irmandade Muçulmana. Muitos deles vieram da Arábia Saudita e de outros países árabes e se mudaram para o Afeganistão, para participar da jihad contra a União Soviética", acrescenta a autora do livro prestes a ser lançado The Rise of Muslim Politics: Islam and State in Central Asia and the Caucasus (O Surgimento da Política Muçulmana: Islã e Estado na Ásia Central e no Cáucaso, em tradução livre).
Os muçulmanos soviéticos e a Revolução Russa
Dentro da União Soviética, no entanto, a relação entre Moscou e as populações muçulmanas passou por diferentes fases desde o triunfo da Revolução Russa.
Durante seus mais de 70 anos de existência, a União Soviética alternou períodos de tolerância - em que a convivência entre o islã e o socialismo era possível - com momentos de severa repressão religiosa, não só contra os muçulmanos.
Nos primeiros dias da Revolução Russa, Lenin pediu aos seguidores do islã - que haviam sido marginalizados e reprimidos pelo Império Russo - para se juntarem aos bolcheviques, à frente da revolta.
"Muçulmanos russos cujas mesquitas e casas de pedra tenham sido destruídas, cujos costumes e crenças tenham sido zombados pelos czares, apoiem a revolução!", disse o líder revolucionário em novembro de 1917.
Para Lenin, os cerca de 16 milhões de muçulmanos do Império Russo - em torno de 10% de sua população - eram uma força útil para o avanço de seu projeto político.
Foi também nos primeiros dias da URSS que ideólogos e revolucionários como Sultan Galiev - um bolchevique de origem tártara - tentaram combinar o marxismo e o islã em uma única ideologia.
Mas esse "nacionalismo socialista muçulmano" não durou muito. Galiev, acusado de desvios nacionalistas, foi preso em 1923 e expulso do Partido Comunista. Em 1940, ele foi executado.
Repressão contra os muçulmanos soviéticos
Desde o início dos anos 1920, a URSS começou a considerar o islã uma força contrarrevolucionária que tinha que ser combatida. Assim, milhares de mesquitas e madrassas (casas de formação no islamismo) foram fechadas, especialmente na Ásia Central.
"No final, havia apenas duas escolas islâmicas legalizadas em toda a União Soviética. O número de mesquitas diminuiu drasticamente. Enquanto anteriormente centenas de mesquitas podiam ser encontradas em uma única grande cidade na Ásia Central, depois sobraram cerca de 17 em todo o Tajiquistão, por exemplo. A política soviética foi extremamente repressiva e destrutiva com a cultura e a fé muçulmana", afirma Collins.
Essa linha dura suavizou após a invasão alemã da URSS, quando mudanças na política religiosa levaram a um período de relativa tolerância.
Burocracia religiosa
Moscou criou uma espécie de "burocracia religiosa" que tentou monopolizar a prática do islã e limitar a prática da fé a lugares controlados pelo Estado.
Como resultado, uma parte da população muçulmana da Ásia Central deslocou suas práticas religiosas para a esfera privada.
"Eles continuaram a organizar funerais muçulmanos nas suas casas, mesmo sabendo que isso era arriscado. Abandonaram sinais externos, como o hijab (véu tradicional do islã) ou a ida regular às mesquitas, mas muitos deles continuaram sendo crentes. Não foram secularizados", diz Collins.
Alguns autores argumentam que essa prática religiosa não oficial, somada à rigidez do governo, levou à radicalização dos muçulmanos soviéticos. No entanto, há dúvidas sobre esse ponto.
"É uma questão complicada, não existe uma reação universal ou geral contra a URSS, especialmente nas últimas décadas. Pode-se dizer que muitas pessoas acabaram se adaptando ao sistema soviético, porque este lhes permitia avanços em termos educacionais, profissionais. Não havia nenhum caso de um movimento muçulmano de massa contra a União Soviética", diz o professor Collins.
"Havia pequenos grupos, que se chamavam os 'jovens mulás', especialmente no Tajiquistão e no Uzbequistão, que começaram a se radicalizar com ideias da literatura da Irmandade Muçulmana e de outros grupos islâmicos transnacionais que se infiltraram na URSS nos anos 1970 e 1980", acrescenta a pesquisadora.
O colapso da URSS, nos anos 1990, e a independência das repúblicas muçulmanas na Ásia Central representaram uma mudança drástica.
Esses grupos minoritários se tornaram a base da nova oposição islâmica, violenta em alguns casos, que foi duramente reprimida no Uzbequistão e no Tajiquistão - da década de 90 até o presente.
Estado Islâmico e ex-repúblicas soviéticas
Com a queda da URSS, os movimentos islâmicos locais - às vezes forçados a fugir de seus países de origem - começaram a convergir ao jihadismo internacional que havia sido estimulado pela guerra no Afeganistão.
Quase 30 anos após a separação de Moscou, as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central continuam sob o controle de governos autoritários e o islã político continua a ser reprimido. Uma estratégia que, às vezes, parece dar resultados opostos aos planejados.
No entanto, o território pós-soviético onde o jihadismo foi mais ativo nas últimas décadas não deve ser buscado na Ásia Central, mas na Chechênia, nas montanhas do Cáucaso.
Desde a sua adesão ao Império Russo em meados do século 19, essa república predominantemente muçulmana foi palco de várias revoltas contra Moscou.
Em 1944, Josef Stálin chegou a deportar centenas de milhares de chechenos para a Sibéria, acusados de colaborar com os nazistas.
Mas a repressão não acabou com o nacionalismo na região: meio século depois, o colapso da URSS foi visto como uma oportunidade para a independência. Isso também levou ao surgimento do radicalismo islâmico no Cáucaso.
"Durante o início da década de 90, os separatistas buscaram a total independência de sua república, mas o fracasso na construção desse Estado e a forma brutal como Moscou lutou contra ele transformou a causa nacionalista em islamista, com um componente jihadista", afirma relatório publicado em 2012 pelo centro de estudos International Crisis Group.
Em 1999, os rebeldes chechenos anunciaram a implementação da sharia (lei islâmica) na Chechênia e invadiram a república vizinha do Daguestão, onde declararam um Estado islâmico. Mais uma vez, a Rússia respondeu militarmente.
A segunda guerra chechena terminou com a destruição de sua capital, Grózni, e a tomada do poder por Moscou.
Desde então, militantes jihadistas chechenos continuaram a realizar diversos ataques - incluindo a tomada de mais de 800 reféns num teatro de Moscou em 2002, que terminou com a morte de pelo menos 170 pessoas, e a invasão a uma escola de Beslan, que terminou com quase 400 mortes.
Seu papel no jihadismo internacional também tem sido ativo. Em algumas ocasiões, essa área do Cáucaso e as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central já foram descritas como "viveiros jihadistas".
"Se você somar todos os países pós-soviéticos, você verá que eles enviaram o segundo maior número de militantes para o EI (o autodenominado grupo Estado Islâmico) depois da Tunísia. No entanto, acho que há particularidades desse fenômeno que são contraditórias com o período soviético", diz o professor Nunan.
"Uma delas é que essas pessoas vivem em Estados independentes onde muitas vezes há carência de legitimidade e uma maior corrupção do que na antiga URSS. Na União Soviética, as pessoas tinham proteção social, um emprego estável, um senso de pertencimento a uma superpotência. (...) Para muitas pessoas hoje, particularmente em países como o Tajiquistão ou o Quirguistão, a percepção é de perspectivas de vida muito mais limitadas", aponta o especialista.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.