Ruas viram feira livre em novo reduto do crack em São Paulo

Bruno Marfinati, em São Paulo

  • Paulo Whitaker / Reuters

Quando anoitece, um acende e apaga de isqueiros e fósforos denuncia que o crack está enraizado em redutos dos principais centros urbanos do país, apesar dos esforços ainda insuficientes para conter a epidemia da droga barata que "fissura".

Imagens captadas pela Reuters durante 24h em algumas das cidades sedes da Copa do Mundo de 2014 provam que ainda é preciso fazer muito para controlar o consumo desenfreado e público da droga.

Craqueiros inquietos, em uma cena que faz lembrar o burburinho das feiras livres, se agrupam em calçadas das ruas centrais da capital paulista na tentativa desesperada de obter uma "pedrinha".

O domingo no centro paulistano mostra sua cara como um dia normal de descanso, território ideal para os usuários de crack, que aproveitam o dia e se sentam em frente às portas do comércio local à espera do traficante ou do "aviãozinho", aquele que traz a droga de bicicleta. Quem já tem a sua, se vira de costas para a rua e, desafiando o vento, tenta acender o cachimbo improvisado.

A poucos metros da avenida São João, no centro antigo da cidade, há jovens, idosos, deficientes físicos de muleta e cadeira de rodas, mulheres grávidas e algumas crianças: o crack consome indiscriminadamente os moradores de rua.

Um homem passa e canta: "O crack é muito bom, não quero largar, olha como sou chique." Minutos depois, uma moça vestindo uma blusa com capuz cor-de-rosa, com olhar alucinado, comenta: "Não olhe pra mim, eu não sou bonita."

Impacientes, eles andam com a mão fechada para não deixar as pedras cair. Apesar do baixo valor -é possível comprar uma pedra por 2 reais- é um tesouro nas mãos de quem consome. Perambulando pela rua, às vezes escondem facas sob cobertores para se defenderem. Não mexem com quem passa, desde que não sejam incomodados na "boca de fumo".

Na mesma área, duas traficantes se misturam ao grupo -uma mulher de boné com dinheiro visível na mão e outra mais bem vestida que sai sorrateiramente com uma sacola de plástico, depois de alimentar "craqueiros" ávidos por mais uma fumada. Quem trafica geralmente não consome.

Os usuários desse subproduto da cocaína, que antes ficavam restritos a uma área da capital conhecida como Cracolândia, onde se concentravam em grande número, agora migraram para outras regiões do centro antigo, como as ruas próximas ao Largo do Arouche.

A dispersão veio depois que a Polícia Militar conduziu uma operação em janeiro para combater o tráfico de drogas, diminuir a criminalidade e recuperar áreas degradadas, com abordagens de pessoas, encaminhamentos, internações e apreensões de milhares de pedras de crack.

O problema apenas mudou de lugar. "A cracolândia não acabou", disse o dono de um hotel que fica no novo reduto dos usuários.

Para uma moradora da região, não há mais liberdade. "Dormir já não se dorme mais. Eles falam alto, brigam, gritam. A única coisa que nós não temos é liberdade de ir e vir... Eles estão numa situação que eu não sei como ainda respiram. Você olha nos olhos deles, eles estão definhando", afirmou Rose, que pediu para não ter seu nome divulgado.

O crack chega ao sistema nervoso central de 8 a 15 segundos, e a ação da droga não dura mais do que 10 minutos. É isso que faz o usuário ficar fissurado para querer consumir uma pedra atrás da outra -em um dia chegam a fumar até 15 pedras.

Os craqueiros andam olhando para o chão em busca do farelo que o outro pode ter deixado cair. Muitos estão descalços, com os pés calejados pelo constante vaivém. Os pedestres já não se importam, passam, desviam e seguem sua caminhada.

A migração dos usuários da Cracolândia paulistana fez muitos donos de lojas e estabelecimentos contratarem seguranças privados. Eles começam o trabalho à noite e, munidos de cassetetes de madeira, afugentam os grupos das portas e calçadas, mas sem atingi-los.

"Trabalho há cinco anos como segurança noturno e a situação tem piorado muito. A gente sozinho não consegue lidar com eles", afirmou José Maria, que temendo uma represália preferiu não revelar o seu sobrenome. Havia três seguranças para uma rua.

Já passa da meia-noite, em algumas horas a semana de trabalho está por começar na maior capital do país quando uma mulher com uma criança no colo, coberta por um xale, se aproxima do grupo que a essa altura já quase fecha a rua de tão numeroso. São cerca de 300 pessoas. Um menino, que aparenta ter no máximo 10 anos, empurrando um carrinho de boneca, pergunta: "Mãe, você tem troco pra ele?", após entregar ao cliente as pedras do crack.

A maioria carrega uma sacola com objetos que estão à venda para conseguir dinheiro para a droga. A polícia passou duas vezes em 15 minutos, mas sua ação limitou-se a espantar os usuários da rua que, sem outro destino, se aglomeram nas vias paralelas para depois voltarem em uma peregrinação sem fim. Desde 2006, usuários e dependentes não podem ser presos.

Alguns carros de luxo também param e em menos de cinco minutos deixam o local. Em pouco mais de meia hora, usuários tentam vender um gorro ao preço de 1 real e um par de tênis por 5 reais, bem abaixo do que realmente valem. Um deles chegou a oferecer à Reuters um celular avaliado em 500 reais por meros 100 reais.

A manhã chega, e as lojas começam a abrir as portas. A vida volta à normalidade, e os vestígios da feira noturna do crack só estão no chão -copos, papéis, bitucas de cigarro e garrafas plásticas.

Ali, a atividade que se vê na rua é ditada pelo tempo. Quando a tarde cai, tudo volta à mesma cadência, um ciclo vicioso do "acende e apaga" que ninguém tem conseguido driblar.

"É horário marcado, às 20h. O traficante vem, chega aí, fica no meio, e os 'noias' protegem. É sempre assim", disse a proprietária de um hotel, referindo-se à forma como os usuários são chamados.

Vilão

Ainda se sabe pouco sobre o consumo do crack, que em São Paulo está em sua segunda onda -a primeira foi nos anos 1990 e desde então o número de usuários triplicou. O Ministério da Saúde estima o número de usuários de drogas em geral no país em 600 mil, embora algumas organizações e especialistas apontem para quase 1,2 milhão.

Combater o crack foi uma das promessas de campanha da presidente Dilma Rousseff, que lançou um plano de 4 bilhões de reais em dezembro que prevê a abertura de 13.518 novos leitos para usuários de drogas até 2014, com ações estruturadas em saúde, segurança pública e prevenção.

"Falta uma gestão do problema... falta direcionamento, nós não temos política nenhuma para as drogas no Brasil", disse a psiquiatra e membro do conselho consultivo da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (Abead), Ana Cecília Roselli Marques.

No Brasil, não há dados oficiais sobre o montante de dinheiro que a indústria das drogas fatura, mas estimativas extraoficiais de diversas organizações mostram que esse número é de cerca de 1,5 bilhão de reais anualmente.

Embora o crack não renda muito para o traficante, porque é barato, ele causa uma dependência mais forte e duradoura que garante um mercado de consumo permanente.

"O traficante está ofertando a droga para o usuário recair e para os que não começaram começarem. Esse controle da oferta tem que existir... porque senão, não tem fim", disse Ana Cecília, que também é pesquisadora do Instituto Nacional de Políticas Públicas do Álcool e Drogas (Inpad).

Mais importante do que abordar, reprimir e encaminhar, é preciso discutir a assistência em longo prazo e a reinserção dos ex-usuários na sociedade para que não sejam novamente atraídos pela sedução que a droga oferece, defendeu Ana Cecília.

"É possível uma remissão parcial do vício com no mínimo 12 meses de tratamento intensivo. Mas e depois? A família vai querer o ex-usuário de volta? Ele tem para onde ir? Se voltar para a rua começa tudo de novo."

(Reportagem adicional de Paulo Whitaker)

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