Amor Divino de Rose, que luta com o marido pelos filhos deficientes
Nos confins da Vila Brasilândia, uma das maiores favelas paulistas, o casal Rose e Ivo vive com seus três filhos deficientes. Eu soube do drama de Rose ao fazer uma reportagem sobre a clínica da AACD para crianças deficientes. Imediatamente marquei para nos conhecermos na comunidade dela às 5h, horário em que a família sai para uma sessão semanal de fisioterapia.
O beco onde a família mora não aparecia no GPS do meu táxi, então nos perdemos no labirinto escuro. Precisei esperar uma hora mais decente, mais próxima das 5h, antes de ligar pedindo socorro. Com as orientações deles, finalmente cheguei ao topo de uma viela íngreme, e me descobri praticamente dentro de uma "boca de fumo" frequentada por usuários de crack. Ivo veio correndo me encontrar, conversou com um dos viciados, e só então ouvi as palavras: "Táxi liberado para passar." Fiquei aliviado.
Descemos então dois outros becos para chegar à casa deles. Na sala, seus três filhos mudos, Samille, de 9 anos, Dhones, de 7, e Izabely, 6, estavam sentados lado a lado em um sofá coberto por uma capa vermelha, diante de uma parede coberta de bolor marrom e verde. A cena me pareceu ao mesmo tempo triste e bonita.
As três crianças sofrem de uma doença chamada Pelizaeus-Merzbacher, ou PMD, um raro distúrbio nervoso genético que afeta a coordenação e o intelecto. Fiz a mim mesmo a pergunta óbvia. Como uma mãe continuava tendo filhos com uma doença tão grave? Samille, Dhones e Izabely receberam o diagnóstico muito precocemente.
Assim que cheguei à casa, já era hora de levar as crianças para a clínica. Ivo rapidamente começou o árduo ritual de arrastar as cadeiras de rodas, uma a uma, ladeira acima, até o alto do morro. Fez o trajeto três vezes, e depois mais duas para levar duas das crianças, enquanto Rose carregava a terceira. Uma van especialmente equipada chegou quando o céu clareava, entramos nela e partimos para o longo trajeto até a Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD).
Da Bahia para São Paulo
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Rose dá de comer aos filhos Samille, 9; Dhones, 7; e Izabely, 6
Rose e sua família viviam na Bahia quando ficaram sabendo da AACD, única clínica do gênero a oferecer atendimento gratuito no Brasil. Ivo viajou antes para São Paulo, a fim de procurar emprego e depois trazer a família, embora na época o casal não soubesse ao certo como a doença afetaria cada uma das crianças.
Uma vez em São Paulo, Rose solicitou ajuda do INSS, e após três anos de espera passou a receber apenas 622 reais por uma das três crianças. O INSS entendeu que o emprego de Ivo lhe permitia manter as outras duas. Ivo trabalha numa padaria, 12 horas por dia, seis dias por semana, e ganha 680 reais por mês.
Quando comentei com Rose que ela deveria continuar solicitando ajuda do INSS, ela respondeu: "Eu me senti humilhada lá, não posso voltar." Mas ela acabou conseguindo auxílio da prefeitura paulistana, na forma de transporte até a AACD. A van que nos apanhou no topo da viela onde eles vivem começou a chegar um ano depois de ela fazer a solicitação.
Acompanhei Rose e seus filhos às sessões de terapia na clínica, onde ela ficou amiga de outras mães de crianças deficientes. Uma delas me marcou claramente por algo que me disse: "Quando conheci a Rose e os filhos dela, finalmente tive uma razão para parar de chorar. Ela tinha três crianças deficientes, e eu tenho só uma. Não era certo que eu ficasse tão triste, quando eu comparava a minha situação com a da Rose".
Também passei muitas horas na casa da família na Brasilândia, onde Rose tem pouquíssimo tempo para descansar, pois precisa dar atenção constante aos filhos. Nesses raros momentos ela conseguiu me contar partes da sua história. A primeira coisa que ela fez foi me pedir para adivinhar o seu sobrenome e o dos filhos. Eu não tinha ideia, então ela me disse: "Amor Divino". Olhei para ela sorrindo, mas sem palavras.
No aperto
A vida doméstica se desenrola num só quarto com duas camas; Rose e Ivo dormem numa cama de solteiro, e as três crianças dividem uma de casal. Eles comem, brincam, veem TV e dormem no mesmo cômodo. Nunca vi como se arranjam para dormir. Parecia ser um momento íntimo demais para que eu ficasse por lá.
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Rose dá banho no filho Dhones, 7
As duas meninas vão à escola, porque uma van as leva. Dhones, o menino, precisa ser carregado nos 15 minutos de caminhada de casa até uma escola pública próxima, para que possa participar de um período de recreação que dura uma hora. Como não é uma escola para portadores de necessidades especiais, ele só consegue participar da recreação. Quando ele está na escola com a mãe, uma moça vizinha fica com as meninas, que não falam, mas conseguem se comunicar por gestos.
Certas situações durante esta reportagem permanecem vívidas na minha lembrança. Um dia, Rose recebeu um telefonema de um hospital e teve de sair de casa para conseguir um sinal melhor para o celular, me deixando sozinho para alimentar as três crianças. Diante dos três pratos de comida, eu me desdobrava dando uma colherada para cada um, mas fiquei muito nervoso com a quantidade, com medo de que eles engasgassem. No final me virei bem, e acabou sendo uma experiência muito satisfatória.
Senti grande frustração por ela pelo fato de o governo ter se recusado a lhe fornecer ajuda suficiente para a sua sobrevivência. O momento mais triste para mim foi acompanhar Rose levando Dhones à escola. Eu me senti invadindo sua privacidade ao fotografá-la carregando o menino pelos becos da favela, sob o olhar dos outros moradores. Um dia, decidi não acompanhá-la para apanhar Dhones na escola, então me sentei na porta da casa deles esperando sua chegada.
Eu observava os viciados em crack comprando e vendendo a droga enquanto crianças brincavam nos arredores, e então Rose apareceu com Dhones nos braços. O peso dele quase superava as forças da mulher, e ela praticamente arrastava as pernas pelo chão. Apanhei minha câmera e tirei algumas fotos, as quais para mim são um retrato que diz tudo sobre o seu mundo e o seu drama.
Padrão de vida ou de consumo?
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Rose leva os filhos à AACD, em São Paulo
Certa vez, conversando enquanto ela preparava o jantar, eu disse que torcia para que essas fotos a ajudassem de alguma maneira. O olhar que ela me dirigiu me chocou. Os olhos dela me diziam que ela não acreditava em ajuda chegando de lugar nenhum.
Seus vizinhos costumam ajudá-la carregando sacolas e eventualmente as cadeiras de rodas, as quais, em terreno plano, podem ser enganchadas umas às outras, formando uma espécie de trenzinho. Rose me contou que até os vendedores de crack a ajudam de vez em quando. Eles chegavam a sair de perto se eu pedisse, assim eles não apareciam nas minhas fotos. Eu só conseguia pensar que quem deveria realmente ajudar, o governo e o INSS, não ajudava, ao passo que esses caras, fazendo algo ilegal, ajudavam.
Um sentimento constante no decorrer da reportagem foi a raiva contra o sistema. Não tenho palavras para expressar esse sentimento, então o que me vem à mente são algumas frases do escritor uruguaio Eduardo Galeano:
Que tal se alucinássemos por um instante? Olhemos para além da infâmia, imaginemos outro mundo possível:
Os economistas não devem chamar de "padrão de vida" o que na verdade é "padrão de consumo", nem chamar de "qualidade de vida" o que na verdade é "quantidade de coisas".
Os políticos não devem acreditar que os pobres adoram comer promessas.
Ninguém deve ser considerado herói ou tolo por fazer o que acredita ser correto, em vez do que vai melhor atender aos seus interesses.
A comida não deve ser uma commodity, nem as comunicações devem ser um negócio, porque comida e comunicação são direitos humanos.
A educação não deve ser privilégio de quem pode pagar.
Justiça e liberdade, esses irmãos siameses condenados a viverem separados, devem se encontrar novamente e serem reunidos, lado a lado.
Os desesperados devem ser acolhidos, e os perdidos devem ser encontrados, porque eles são os que se desesperaram de tanto esperar, os que se perderam de tanto procurar.