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Celac: Sem Brasil, Argentina que ser o elo entre EUA e os regimes de Venezuela, Nicarágua e Cuba

Cúpula da Celac no México - Twitter/@m_ebrard
Cúpula da Celac no México Imagem: Twitter/@m_ebrard

Márcio Resende

Buenos Aires

07/01/2022 12h02

A Argentina deve assumir nesta sexta-feira (7) a presidência rotativa da Celac, com a qual a China tem interesse num amplo acordo. O organismo, do qual o Brasil se excluiu em 2020, não condena os internacionalmente questionados regimes de Venezuela, Nicarágua e Cuba. Porém, ao se aproximar desses países, a Argentina automaticamente se afasta dos Estados Unidos, justamente quando mais precisa do apoio norte-americano para um acordo financeiro com o FMI.

Reunidos em Buenos Aires, os ministros das Relações Exteriores e representantes de 32 dos 33 países (Brasil se excluiu) da região preparam-se para fazer da Argentina a liderança da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) durante o próximo ano, até janeiro de 2023.

"O problema não é a Argentina assumir a Presidência da Celac. O trágico é que vai presidir um organismo com três membros que violam os direitos humanos, a liberdade e a democracia", afirma à RFI o ex-chanceler argentino, Jorge Faurie (2017-2019).

A Celac foi criada em 2010, a partir da iniciativa do então presidente venezuelano Hugo Chávez, sob o argumento de que a Organização dos Estados Americanos (OEA) é um âmbito que responde aos interesses dos Estados Unidos.

No continente americano, o organismo excluiu os Estados Unidos e o Canadá, mas incluiu Cuba, país excluído da OEA.

Em 2010, Cuba era considerada a única ditadura na região. Onze anos depois, acrescentando a Venezuela e a Nicarágua, a América Latina e o Caribe têm três regimes questionados e sancionados internacionalmente.

"É um delírio uma comunidade que se constitui com esses países. Depois de cada reunião, o documento final nunca poderá mencionar a palavra 'democracia' nem dirá o que sofrem os povos cubano, venezuelano e nicaraguense", critica Jorge Faurie.

Equilíbrio difícil

Numa região polarizada entre visões políticas e econômicas completamente antagônicas, a Argentina pretende desempenhar um papel de articulação, visando o período pós-pandemia.

No campo político, quer se tornar uma espécie de elo no diálogo entre os Estados Unidos e os regimes de Venezuela, Nicarágua e Cuba.

"Essa é outra incongruência. Os Estados Unidos não precisam de pontes se quiserem estabelecer um diálogo com esses países. O que os Estados Unidos e a União Europeia realmente querem é que haja países nesta região que ajudem a recuperação da democracia na Venezuela, na Nicarágua e em Cuba", explica o embaixador Faurie, ao mesmo tempo que conclui: "Mas a Argentina, para conseguir os votos desses países, prefere ficar em silêncio e esconder a realidade".

Conivência em troca de votos

Na Celac, todas as decisões precisam de consenso. Basta um voto contrário para um impasse. Em setembro passado, estava tudo pronto para a Argentina assumir a presidência do organismo, mas, como o governo do presidente Alberto Fernández questionava a prisão de opositores políticos na Nicarágua, o regime de Daniel Ortega retirou o apoio à Argentina.

O compromisso agora assumido pela Argentina é o de não questionar o regime de Ortega. A Argentina vai abster-se nas votações que procurarem condenar as violações aos direitos humanos na Nicarágua, na Venezuela e em Cuba.

"Seja por razões financeiras ou políticas, está claro que a Argentina tem vedado as críticas a esses países", indica à RFI o cientista político Lucas Romero, da Synopsis Consultores.

Perda de prestígio

Para liderar a região, incluindo os regimes questionados, a Argentina tem comprometido a sua principal bandeira de prestígio internacional: a defesa dos direitos humanos.

Nas últimas quatro décadas, desde que recuperou a democracia em 1983, a Argentina foi uma referência internacional na matéria. Na região, foi o primeiro país a acabar com a ditadura e marcou um rumo para os vizinhos. Além disso, indicou o caminho ao julgar e condenar centenas de ex-repressores do antigo regime militar.

"A atual postura de não condenar os regimes de Venezuela, Nicarágua e Cuba afasta a Argentina da sua liderança em matéria de direitos humanos. É uma vergonha e, ao mesmo tempo, uma pena. Era uma liderança ganha pelo exemplo. A Argentina serviu como um pilar na região para instalar a questão de respeito aos direitos humanos. Isso fica agora totalmente fraturado", explica à RFI o cientista político Sergio Berensztein.

O presidente Alberto Fernández tem alegado o princípio de não-intervenção em terceiros países para não condenar os regimes cubano, nicaraguense e venezuelano, embora os direitos humanos não sejam aplicável a esse princípio.

No entanto, o argumento só vale quando o país a ser questionado for governado pela esquerda. Quando o governo é de direita, como nos casos de Brasil, Chile, Uruguai e Colômbia, Fernández opina sobre política interna sem duvidar, segundo analistas.

"Fica claro que o princípio de não-intervenção que regia nas relações diplomáticas ficou bem diluído nos últimos tempos. Alberto Fernández se meteu nas eleições de todos os países, menos em Venezuela, Cuba e Nicarágua. Não se mete onde não lhe convém", compara Lucas Romero.

Brasil auto-excluído

Em 15 de janeiro de 2020, alinhado aos interesses dos Estados Unidos, o governo de Jair Bolsonaro decidiu suspender a participação do Brasil na Celac. O objetivo foi esvaziar o peso do foro, mas, sobretudo, a voz de Cuba, Venezuela e Nicarágua.

O então chanceler Ernesto Araújo criticou a "falta de resultados na defesa da democracia" por parte da Celac e concluiu que o foro tornou-se "um palco para regimes não-democráticos como os de Venezuela, Cuba, Nicarágua".

A Argentina aproveita a ausência do Brasil para liderar a comunidade, mesmo que o Brasil represente metade da região em termos territorial e econômico. "O país de maior peso na região, atualmente, não está na Celac", sublinha Jorge Faurie.

Ao mesmo tempo, fora da Celac, o Brasil perdeu a chance de exercer a voz dos países que condenam as violações aos direitos humanos na América Latina.

Acordo com a China e com o FMI

A China quer um acordo amplo com a Celac nos campos comercial, econômico e financeiro. O entendimento inclui linhas de crédito e investimentos em telecomunicações, leia-se, tecnologia 5G.

Essa aproximação preocupa os Estados Unidos. Além de acobertar os regimes de Venezuela, Nicarágua e Cuba, a Argentina seria pivô de uma aproximação com a China.

"Essa aproximação com a China está presente nos cálculos dos EUA e nas negociações entre a Argentina e o FMI. Os Estados Unidos sempre registram esses movimentos", adverte Jorge Faurie

A Argentina precisa do apoio dos Estados Unidos nas negociações por um acordo financeiro com o Fundo Monetário Internacional. Os Estados Unidos são o principal acionista no FMI. Sem o aval político de Washington, não há acordo.

"Esses movimentos contraditórios da política externa argentina desorientam as partes envolvidas nas negociações. Não facilita o acordo", acredita o diplomata.

A Argentina precisa do aval norte-americano antes do dia 22 de março, quando vence uma parcela da dívida com o FMI. A Argentina não tem dinheiro para honrar esse pagamento.

"A Argentina não pode pretender um acordo com o FMI e continuar com essa política ambígua de apoiar a Nicarágua e a Venezuela", conclui Sergio Berensztein.