Hostilidade de muçulmanos em relação à homossexualidade tem pouca base no Alcorão

Mustafa Akyol

Em Istambul (Turquia)

  • Kemal Aslan/Reuters

    Policiais usaram um canhão de água para dispersar ativistas dos direitos LGBT antes da Parada Gay no centro de Istambul, na Turquia, em 28 de junho. A polícia também disparou balas de borracha para dispersar a multidão

    Policiais usaram um canhão de água para dispersar ativistas dos direitos LGBT antes da Parada Gay no centro de Istambul, na Turquia, em 28 de junho. A polícia também disparou balas de borracha para dispersar a multidão

Em 29 de junho, a 12ª Parada do Orgulho Gay da Turquia foi realizada na lotada avenida Istiklal de Istambul. Milhares marchavam alegremente carregando bandeiras do arco-íris até a polícia começar a dispersá-los com canhões de água. As autoridades, como de hábito desde os protestos no Parque Gezi em junho de 2013, de novo decidiram não permitir uma manifestação pelos turcos seculares que não se encaixam na visão deles de cidadão ideal.

Notícias mais preocupantes ocorreram uma semana depois, quando cartazes foram colados em Ancara com uma instrução assustadora: "Se vir alguém realizando a obra suja do Povo de Ló, mate o autor e o ato!" "Povo de Ló" é uma referência religiosa aos gays, e a instrução para matá-los ao vê-los foi atribuída ao profeta Maomé. O grupo responsável pelos cartazes, a chamada Juventude de Defesa Islâmica, defendeu sua mensagem afirmando: "O quê? Você se ofende com as palavras de nosso Profeta?!"

Tudo isso sugere que tanto a Turquia quanto o mundo muçulmano precisam realizar uma autoanálise em relação à tolerância com seus compatriotas gays.

É claro que essa intolerância não é exclusiva de turcos ou muçulmanos. Segundo a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais, os turcos se saem ligeiramente melhor em direitos dos gays em comparação a países vizinhos de maioria cristã, como a Rússia, Armênia e Ucrânia. De fato, as leis seculares da Turquia não penalizam a orientação sexual, e alguns ícones LGTB assumidos há muito são populares como artistas, cantores ou estilistas de moda. Entre eles estão dois dos "entertainers" turcos mais populares do último meio século: o falecido Zeki Muren era escancaradamente gay e a cantora Bulent Ersoy é uma transexual famosa. A excentricidade aparentemente apenas aumentou a popularidade deles.

Mas fora do setor de entretenimento, a posição tradicional islâmica a respeito da homossexualidade produz intolerância na Turquia em relação aos gays e cria probemas nos países muçulmanos que aplicam a Shariah. Na Arábia Saudita, Irã, Sudão ou Afeganistão, a homossexualidade é uma ofensa séria que pode levar à prisão, punição física ou até mesmo à pena de morte. Enquanto isso, militantes do Estado Islâmico adotam a interpretação mais extrema da Shariah, atirando gays do topo de prédios.

No coração da visão islâmica a respeito da homossexualidade está a história bíblica de Sodoma e Gomorra, que também é narrada no Alcorão. Segundo as Escrituras, o profeta Ló alertou seu povo sobre a "imoralidade", pois "procuravam os homens com desejo, em vez das mulheres". Em resposta, o povo alertado por Ló tentou expulsar o profeta da cidade, e até mesmo tentaram abusar sexualmente dos anjos que vieram a Ló na forma de homens. Consequentemente, Deus destruiu o povo de Ló com um desastre natural colossal, salvando apenas o profeta e alguns poucos crentes.

O muçulmano conservador médio usa essa história como justificativa para estigmatizar os gays, mas há uma questão importante que merece consideração: o Povo de Ló recebeu a punição divina por ser homossexual, ou por atacar Ló e seus convidados celestes?

O nuance ainda mais significativo é que apesar do Alcorão narrar essa punição divina para Sodoma e Gomorra, ele não decreta uma punição terrena para a homossexualidade –-diferente do Velho Testamento, que decreta claramente que os homossexuais devem ser mortos.

Os pensadores islâmicos medievais deduziram uma punição terrena por considerarem a homossexualidade como uma forma de adultério. Mas nomes significativos entre eles, como o estudioso do século 8º, Abu Hanifa, o fundador da popular escola Hanifa de jurisprudência, argumentavam que como a relação homossexual não produzia filhos com um pai desconhecido, não poderia ser considerada adultério.

A verdadeira base islâmica para a punição da homossexualidade está nos hadiths, ou dizeres, atribuídos ao profeta Maomé. (O mesmo vale para a punição à apostasia, heresia, impiedade ou "insultos" ao islã: nada disso vem do Alcorão; tudo isso é proveniente de certos hadiths.) Mas os hadiths foram escritos quase dois séculos depois que o Profeta viveu, e sua autenticidade tem sido repetidamente questionada –-desde o século 9º, pelo estudioso Imam Nesai –-e podem ser questionados atualmente. Além disso, não há registro de que o profeta tenha de fato punido alguém por ser homossexual.

Esses fatos jurisprudentes poderiam ajudar os muçulmanos de hoje a desenvolver uma atitude mais tolerante em relação aos gays, como encorajam alguns pensadores islâmicos progressistas na Turquia, como Ihsan Eliacik. O que é condenado na história de Ló não é a orientação sexual, segundo Eliacik, mas a agressão sexual. A vida privada das pessoas é de sua própria conta, ele argumenta, enquanto a posição pública muçulmana deveria ser de defesa aos gays quando são perseguidos ou discriminados –-porque o Islã defende os oprimidos.

Também vale notar que o Califado Otomano, que governou o mundo muçulmano sunita por séculos e o qual o atual governo turco alega emular, tinha uma mentalidade muito mais aberta em relação a esta questão. De fato, o Império Otomano contava com uma extensa literatura de romance homossexual, e uma categoria social aceita de travestis. Os sultões otomanos, sem dúvida, eram liberais sociais em comparação aos islamitas contemporâneos da Turquia, sem contar o mundo árabe.

Apesar desses argumentos, a maioria dos muçulmanos provavelmente continuará vendo a homossexualidade como algo pecaminoso, se as pesquisas de opinião servirem como indicação. Mas esses muçulmanos que insistem em condenar os gays devem lembrar que segundo o Islã, há muitos pecados, incluindo a arrogância, que o Alcorão considera uma das transgressões morais mais graves. Para os turcos e outros muçulmanos, poderia ser nossa própria saída do pecado da arrogância parar de estigmatizar os outros por seu comportamento e nos concentrarmos em aprimorar nós mesmos.

(Mustafa Akyol é autor de "Islam Without Extremes: A Muslim Case for Liberty".)

Tradutor: George El Khouri Andolfato

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