Depoimento: "Classe média está passando fome na Venezuela"

Carlos Hernández

Em Ciudad Guayana (Venezuela)

  • Ronaldo Schemidt/AFP Photo

    26.mai.2016 - Venezuelano protesta contra Nicolás Maduro com cartaz: "estudar com fome não dá resultado"

    26.mai.2016 - Venezuelano protesta contra Nicolás Maduro com cartaz: "estudar com fome não dá resultado"

Somos todos profissionais ou tentando nos tornar profissionais, e não sabemos o que vamos comer amanhã.

Recentemente, eu estava conversando com alguns vizinhos no corredor do edifício onde moramos, um dos predinhos turquesa de um complexo misto residencial e comercial nesta cidade da região nordeste da Venezuela, supostamente um modelo de urbanização.        

Decidimos fazer chá juntando recursos de nossos quatro apartamentos. Não conseguimos arrumar açúcar o suficiente. Alguém tinha abacaxi congelado e cascas de maracujá, outro alguém ferveu a água.

Todos trouxeram suas próprias xícaras, cada uma com uma estampa diferente. A minha, com o desenho de uma vaca, era a mais feia. Sentamos no chão do corredor do lado e fora, à sombra de uma grande mangueira.

A infusão ficou surpreendentemente saborosa, considerando os ingredientes. Um dos caras disse: "É, e ajuda um pouco a matar a fome." Esse é o Manuel. Ele é estudante de direito e o mais novo do grupo. Ele um dia foi musculoso.

Meu irmão, um advogado que um dia já teve pescoço grosso, assentiu com a cabeça. "Não temos nem mesmo as mangas para complementar o jantar", ele disse. Olhei para a árvore. Nós moramos no terceiro andar, então sempre conseguimos pegar os frutos mais altos com relativa facilidade. Quando estão na época, geralmente sobram. Este ano, a árvore já está pelada.

"É melhor ir dormir para não sentir fome", disse María, uma advogada que trabalhou como imigrante ilegal em um restaurante na Espanha, mas que voltou depois de dois meses, horrorizada com as condições de trabalho no país. Eu disse: "Faça isso e vai acabar sonhando com comida."

Eu falava por experiência própria. Enquanto tomava mais um gole do chá, lembrei daquela vez em que, depois de assistir a um episódio de "Game of Thrones", sonhei com um banquete medieval, com um leitão enorme no meio da mesa, vários bolos e hidromel. Em outras vezes, sonhei com um supermercado que tinha todas suas prateleiras cheias. Isso normalmente acontece depois de passar um longo dia na fila debaixo do sol em alguma loja, esperando pela chegada de um caminhão de entrega.

Café e leite se tornaram artigos de luxo para mim alguns anos atrás, mas a escassez realmente assustadora, de itens como pão e frango, atingiu minha casa de classe média no começo deste ano. Houve uma semana em que tive de escovar os dentes com sal.

Vídeo retrata a saga de venezuelanos em busca de comida no Brasil

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Nove de cada dez venezuelanos não têm mais condições de comprar comida suficiente, de acordo com um estudo feito pela Universidade Simón Bolívar. O FMI prevê que a inflação passará de 700% este ano. 

Fofocamos sobre as pessoas que nos pareciam estar ficando mais magras. A lista era longa. Fiquei surpreso com o quanto as coisas se inverteram, com como estar gordo voltou a ser sinal de riqueza. Detectar o burguês parasita nunca foi tão fácil.          

Os burgueses, os ricos e o setor privado são os grupos que o presidente Nicolás Maduro culpa pela recessão da Venezuela. Mas foram os anos de má administração econômica durante a revolução socialista dele e de Hugo Chávez que nos destruíram.

Daniel, um estudante de engenharia que pretende deixar o país assim que conseguir seu diploma, mencionou a velha senhora que vende milho e fubá na frente de nosso prédio. Seus preços sobem toda semana. Ela também está ficando mais magra. Daniel disse que a viu tentando pegar pombos. Os próximos são os cachorros, eu disse.

María disse que ela sofre mais logo depois de correr. Eu parei de fazer exercício. Compartilhamos outras estratégias para aguentar a fome, como acordar tarde—não exatamente uma piada, já que somente filhos de ricos que não precisam trabalhar podem se dar a esse luxo. Concordamos que nossa maior esperança de fato é a Organização dos Estados Americanos (OEA) e sua Carta Democrática.

As notícias sobre a crise na Venezuela se tornaram algo tão grande que a OEA, um bloco que abrange a maior parte dos países das Américas, tem discutido sobre o que fazer conosco. Ninguém acredita de fato que o esforço da oposição venezuelana para tirar Maduro do cargo através de um referendo, ainda que esteja progredindo, dará em alguma coisa.

"Vocês viram o que Almagro disse?" Luis Almagro é o secretário-geral da OEA. Ele culpou Maduro pela crise e fez um apelo para que a OEA considere tomar as medidas necessárias para "restaurar as instituições democráticas" na Venezuela.

"É, parece que eles envolveram a Carta". Ao seguirem a Carta, a OEA pode suspender um Estado-membro que não consiga preservar a ordem democrática. Almagro parece esperar que essa ameaça vá convencer o governo Maduro a aceitar ajuda humanitária de outros países, que foi descartada de antemão.

Entendo que esses processos diplomáticos podem levar meses. É todo um continente tentando encontrar um consenso sobre um assunto complicado. Mas Manuel, Daniel, María, meu irmão e eu, todos profissionais ou tentando se tornar profissionais, não sabemos que raios vamos comer amanhã, então seria lógico pensar que esses diplomatas deveriam começar a espremer duas sessões em um dia ou algo assim. Ande logo, pessoal da OEA, estamos com fome.

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Tradutor: UOL

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