Marcelo Rubens Paiva: O que a ditadura brasileira fez para minha família

De São Paulo

  • Paulo Iannone/Frame/Estadão Conteúdo

    O escritor Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens Paiva, que desapareceu durante a ditadura militar

    O escritor Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens Paiva, que desapareceu durante a ditadura militar

Jair Bolsonaro, um populista de ultra-direita, foi eleito presidente em 28 de outubro. Enquanto processava essa nova realidade, olhei pela janela e vi os fogos de artifício comemorativos iluminarem o céu noturno. Ao longe, vi um dos apoiadores de Bolsonaro segurando uma placa que dizia: "Ustra Vive".

Foi uma lembrança arrepiante do nosso passado. De 1970 a 1974, Carlos Alberto Brilhante Ustra foi o chefe do DOI-CODI, a agência de inteligência responsável por reprimir os críticos durante o regime militar. Ele supervisionava a tortura de dissidentes políticos enquanto eles eram detidos pela polícia secreta.

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A ascensão de Bolsonaro foi impulsionada pela raiva e desilusão das pessoas, decorrente de uma enorme investigação de corrupção de vários anos que revirou o país, uma taxa de homicídios que é muito alta e uma economia decadente. Não importava a muitos que sua retórica inflamatória denegrisse as mulheres, assim como os gays, negros e indígenas, ou que ele falasse com carinho de tortura e ditaduras. De fato, estima-se que 43% da população é a favor que militares intervenham nos assuntos do governo. Eu acho que os brasileiros esqueceram o que significa ser governado à mão armada.

Meu pai era deputado pelo Estado de São Paulo e socialista. A junta militar revogou seu mandato após o golpe de Estado de 1964 e ele voltou a trabalhar como engenheiro civil. Eu tinha 11 anos quando ele foi preso, junto com minha mãe e minha irmã. Era uma manhã ensolarada em janeiro no Rio de Janeiro em 1971, e estávamos nos preparando para ir à praia do Leblon, que ficava do outro lado da rua da nossa casa. De repente, seis homens armados vestidos com roupas comuns entraram pela porta dos fundos e entraram na cozinha, apontando metralhadoras. Lá fora, mais homens cercavam a casa.

O governo havia interceptado cartas e documentos de organizações esquerdistas que foram enviadas ao meu pai de dissidentes no Chile. Eles pensaram que ele tinha um papel na organização da distribuição de correspondências e informações para exilados no Brasil e fora do país. Naquele dia de 1971, meus pais estavam em trajes de banho quando os homens armados invadiram a cozinha. Eles levaram meu pai para o andar de cima para que ele pudesse se vestir enquanto todos nós estávamos sentados no sofá da sala de estar. Foi-lhe dito que os agentes que esperavam do lado de fora iriam levá-lo para que ele pudesse dar seu depoimento. Nunca mais o vimos.

Os seis homens ficaram conosco pelas próximas 24 horas. Então eles levaram minha mãe, Eunice, e minha irmã Eliana, que tinha 15 anos na época, para a instalação do DOI-CODI no Rio de Janeiro, dentro da sede do Exército na rua Barão de Mesquita. Minhas outras irmãs, Ana Lúcia, 13, e Beatriz, 10, e eu fomos deixados sozinhos.

Minha irmã e minha mãe foram assediadas e intimidadas. Elas ficaram sentadas e encapuzadas por 24 horas, sem comida ou água. Um alto-falante tocava "Jesus Cristo", uma canção de Roberto Carlos, para encobrir os gritos de um homem sendo torturado --provavelmente meu pai. Minha irmã foi libertada no dia seguinte. Mas minha mãe passou 12 dias em uma cela escura, usando as mesmas roupas que tinha no dia em que foi presa. Ela foi acordada durante a noite por guardas gritando, que a forçariam a olhar fotos de mulheres e homens que estavam sendo procurados. Obrigado militares, por não matá-la.

Lalo De Almeida/The New York Times
18.out.2017 - Jair Bolsonaro fala com um de seus assessores em seu gabinete em Brasilia com os retratos dos generais que comandaram a ditadura ao fundo

Ao longo dos anos, ouvimos rumores sobre o que aconteceu com meu pai; que ele havia sido morto enquanto estava sendo torturado, que seu corpo havia sido cortado em pedaços. Mas não foi até 2014, quando ex-agentes e oficiais que testemunharam sua tortura depuseram ao Ministério Público, que finalmente tivemos um relato oficial do que aconteceu.

Ele foi levado ao DOI-CODI no Rio de Janeiro, onde foi torturado. Ele morreu menos de 48 horas depois de ser preso. O promotor disse que a intenção dos militares era "infligir sofrimento físico e mental agudo, a fim de intimidá-lo e obter informações sobre os destinatários das cartas e documentos que lhe foram enviados". Um ex-coronel do exército, Paulo Malhães, disse que havia recebido uma ordem do Exército, em 1973, para desenterrar e descartar os restos mortais de meu pai. Nós nunca saberemos o que ele fez com eles. Eu nunca entendi porque minha irmã e minha mãe também foram presas. Para ser torturado com ele, caso ele não falasse?

Depois que a ditadura terminou, uma nova Constituição brasileira, conhecida como Constituição Cidadã, foi aprovada em 1988. O documento garantia direitos territoriais aos povos indígenas e quilombolas, descendentes de escravos afro-brasileiros. Também ampliou as proteções para outras minorias e condenou "preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". Mas agora o Brasil parece pronto para retornar ao seu passado sombrio.

No período que antecedeu esta eleição, houve um aumento na violência e na homofobia alimentadas pelas visões misóginas, racistas, anti-LGBT e antidemocráticas de Bolsonaro. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) registrou mais de 130 casos de violência contra jornalistas em 2018. Suásticas foram pintadas nas paredes de toda a cidade. O Grindr, a maior rede social do mundo para homens gays, enviou uma mensagem de lembrete de segurança para usuários brasileiros que disse: "Após a recente eleição, membros da comunidade Grindr levantaram preocupações sobre o aumento do risco de violência. Tome as medidas necessárias para se manter seguro nesta semana."

Da ditadura, aprendemos a importância da democracia, da tolerância e do Estado de Direito. Os brasileiros não devem ser enganados, Bolsonaro não é o salvador que nosso país precisa. Eu achava que a vida de meu pai e o sofrimento da minha família, e de muitos outros, era um capítulo essencial para ajudar o Brasil a refletir e evoluir. Nós nunca imaginamos que nossa luta e dor não serviriam para nada. Que nossa luta pelo direito de voto seria usada para transformar tudo de volta. Orem por nós.

Tradutor: Thiago Varella

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