Fim das armas nucleares deve ser uma meta global comum

Mikhail Gorbachov

Mikhail Gorbachov

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    Barack Obama, presidente dos EUA, e Dmitri Medvedev, presidente da Rússia, assinam o que é considerado o maior acordo de redução de armas nucleares em 20 anos

    Barack Obama, presidente dos EUA, e Dmitri Medvedev, presidente da Rússia, assinam o que é considerado o maior acordo de redução de armas nucleares em 20 anos

Uma sequência notável de eventos em abril voltou os holofotes ao desarmamento nuclear e à segurança global. Eu estou me referindo à assinatura pelos presidentes Barack Obama e Dmitri Medvedev do tratado Novo START, a apresentação por parte do governo Obama de sua nova doutrina nuclear e a cúpula de segurança nuclear em Washington, da qual participaram líderes de vários países. 

O gelo foi quebrado. A situação atual é dramaticamente diferente daquele de apenas dois anos atrás. Mas mudou o suficiente para poder ser dito que o processo atualmente em andamento é irreversível? 

Vamos olhar primeiro para o Novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas (START), que já está sendo criticado. Ele tem sido chamado de irrelevante e as reduções que pede foram descritas como “contabilidade criativa”. Apesar das reduções serem de fato modestas em comparação às realizadas sob o tratado que o presidente Bush e eu assinamos em 1991, o novo tratado é um grande avanço. 

Primeiro, ele retoma o processo iniciado na segunda metade dos anos 80, que possibilitou livrar o mundo de milhares de ogivas nucleares e centenas de lançadores. 

Segundo, os arsenais estratégicos dos Estados Unidos e da Rússia novamente foram colocados sob um regime de verificação mútua e inspeções. 

Terceiro, os Estados Unidos e a Rússia demonstraram que podem resolver os problemas mútuos mais complexos de segurança, o que oferece a esperança de que trabalharão juntos de forma mais bem-sucedida para tratar das questões globais e regionais. 

Finalmente, e talvez mais importante, com o tratado Novo START, as duas maiores potências nucleares dizem ao mundo que estão falando sério a respeito de sua obrigação segundo o Tratado de Não-Proliferação Nuclear, de agir visando eliminar as armas nucleares. Ao retomar a meta de um mundo livre de armas nucleares, o tratado é uma ferramenta poderosa para pressão política sobre os países, particularmente o Irã e a Coreia do Norte, cujos programas nucleares causam preocupações legítimas na comunidade internacional. Ele também lembra a outras potências em armas nucleares que elas também devem se juntar ao processo de desarmamento nuclear. 

Costumam me perguntar com frequência, na Rússia e em outros lugares, se o processo de desarmamento nuclear poderia ser minado pelo aumento dos arsenais de outros países, como a China, Paquistão e Índia, por exemplo. Esta é uma pergunta legítima. O mínimo que os outros membros do “clube nuclear” devem fazer agora é congelar seus arsenais. 

Um maior avanço no caminho do desarmamento e da não-proliferação seria facilitado por uma declaração das potências nucleares, dizendo que o único propósito das armas nucleares é impedir seu uso. Infelizmente, a nova doutrina nuclear americana não vai tão longe. Todavia, este documento, assim como a doutrina militar da Rússia, sinaliza uma tendência de menor dependência das armas nucleares. 

A nova doutrina americana enfatiza que a Rússia não é mais uma adversária. Ela declara a intenção do governo Obama de assegurar a ratificação do tratado que proíbe todos os testes nucleares e declara que os Estados Unidos não desenvolverão novas armas nucleares. O governo Obama propôs diálogos bilaterais sobre estabilidade estratégica com a Rússia e a China. 

Esse diálogo deve incluir as questões envolvendo defesas antimísseis. Afinal, o inter-relacionamento entre armas estratégicas ofensivas e defesa antimísseis é reconhecido pelo Novo START. 

O diálogo sobre estabilidade estratégica é certamente do interesse da Rússia. Para conduzi-lo com confiança, nós na Rússia precisamos de um sério debate a respeito do problema da defesa antimísseis, envolvendo especialistas, membros do Parlamento e os militares. De que tipo de defesa antimísseis a Rússia precisa? Ela deve estar ligada ao sistema de defesa antimísseis americano? Estas são questões políticas, não técnicas. As decisões a respeito dessas questões permanecerão conosco pelas próximas décadas. 

Mas o diálogo proposto não deve se limitar às armas estratégicas. Problemas mais gerais também devem ser tratados se quisermos desenvolver um relacionamento de parceria e confiança. Primeiro e acima de tudo está o problema da superioridade militar. 

A estratégia de segurança nacional americana, adotada em 2002 e ainda em vigor, proclama claramente a necessidade de uma superioridade militar global americana. Este princípio se tornou, na prática, parte integral do “credo da América”. Ele encontra expressão específica nos vastos arsenais de armas convencionais, no colossal orçamento da defesa e nos planos para militarização do espaço exterior. O diálogo estratégico proposto deve incluir todas estas questões. Chegar a um entendimento mútuo exigirá um senso de realismo e uma visão de longo prazo. 

A Otan agora está discutindo um novo “conceito estratégico” e, pela primeira vez, está consultando a Rússia. Eu aprecio isso. Isso significa que a Otan está pronta para renunciar a intenção de incluir o mundo todo em sua “zona de responsabilidade”, preferindo em vez disso trabalhar em conjunto com outros dentro de instituições multilaterais detentoras de poderes e autoridade reais? Um recente artigo de opinião publicado no “New York Times”, de autoria de George Shultz e William Perry, parece sugerir que americanos influentes agora estão considerando seriamente essas questões. 

Eu estou certo de que a Rússia está pronta para participar dessas discussões –e não apenas a Rússia. Pois, gostemos ou não, o mundo atual é multipolar. 

Há muita conversa insincera de que “estruturas multipolares são inerentemente instáveis”, citando exemplos da Europa nos séculos 19 e 20 e culpando a multipolaridade pelos conflitos e guerras, incluindo as guerras mundiais. Mas essa conversa é inútil, porque a multipolaridade agora é uma realidade. 

Nós vimos nos últimos meses que os centros globais de poder como China, Rússia e União Europeia responderam à crise financeira global de forma responsável: apesar de defenderem fortemente seus próprios interesses, eles levaram em consideração os interesses dos outros participantes e da comunidade mundial como um todo. Isto é a multipolaridade em ação, ajudando a atenuar a crise e buscando tratar das medidas a longo prazo. Mas isto é apenas o início. 

Os problemas enfrentados pela comunidade global são reais e estão piorando, muitos deles são aparentemente intratáveis, sem sinais de progresso. O processo de paz no Oriente Médio está em profunda crise. O mundo ainda está pagando pelos erros da estratégia americana no Iraque e no Afeganistão. Os esforços para um acordo de uma política para a mudança climática global estão emperrados. Os mecanismos para combate à pobreza e o atraso são disfuncionais. 

Na análise final, tudo se resume a uma falta de vontade política e ao fracasso da liderança. Nós precisamos de uma liderança coletiva. Nós vimos recentemente exemplos do que podemos conseguir. Mas o que resta a ser feito é muito maior do que aquilo que já foi feito. 

Tempo demais foi desperdiçado após o fim da Guerra Fria. O legado de suspeita mútua, interesse próprio míope e dominação ainda persiste entre nós. A luta entre este legado e um novo pensamento definirá a política internacional no século 21. 

Nós ainda não ultrapassamos o ponto sem retorno.

Tradutor: George El Khouri Andolfato

Mikhail Gorbachov

Mikhail Gorbachov foi o último presidente da extinta União Soviética e um dos responsáveis pelo fim da guerra fria. Ambientalista, Gorbachov já foi agraciado com o prêmio Nobel da paz.

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