Crise exige revisão da Europa

Mikhail Gorbachov

Mikhail Gorbachov

  • Siamidis Grigoris /Reuters

    Manifestante enfrenta a polícia nas ruas de Atenas, na Grécia, na tentativa de pressionar o governo contra o pacote de austeridade imposto pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pela União Europeia

    Manifestante enfrenta a polícia nas ruas de Atenas, na Grécia, na tentativa de pressionar o governo contra o pacote de austeridade imposto pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pela União Europeia

 

Alguns meses atrás, políticos, economistas e a mídia passaram a discutir se a crise global desencadeada no outono de 2008 teria chegado ao fim. A maioria acreditava que o pior já havia passado e que um crescimento contínuo em breve seria retomado.

A mais recente onda de problemas financeiros e econômicos que atingiu a Europa pegou os especialistas de surpresa, refutando as previsões apressadas de um fim da crise. Mais uma vez, os líderes políticos e especialistas tiveram que revisar as suas crenças e planos.

Na Europa este processo é particularmente doloroso. Como se fosse uma inundação rompendo uma barragem, os problemas que se acumularam durante vários anos em um país, a Grécia, provocaram uma enxurrada que ameaça o euro, o futuro da União Europeia e a recuperação econômica global.

Isso é mais um episódio para nos lembrar de como o mundo está interconectado. Para os europeus, este é mais um motivo sério para se pensar profundamente a respeito da natureza e do ritmo da integração do continente.

Eu não quero me juntar ao coro do pânico. Boatos sobre um iminente fim do euro são claramente exagerados. Mas o euro foi de fato duramente atingido, o que demonstrou que a integração monetária sem mecanismos regulatórios apropriados – políticos, bem como econômicos e fiscais – é algo extremamente arriscado.

Em meio à euforia do crescimento da União Europeia, tais riscos foram ignorados. Agora, a União Europeia tem pela frente a tarefa imediata de conter a crise e de impedir que esta se dissemine para outros países.

O próximo desafio é desenvolver mecanismos para controlar os orçamentos dos Estados membros da União Europeia. E isso é algo que remete ao cerne do problema da soberania. Não existe garantia alguma de que países concordarão com tal invasão daquilo que para eles “é a coisa mais sagrada”. Esta é uma grande questão política, que nos faz ter certeza de que haverá um debate duro e uma busca dolorosa por acordos e compromissos.

 

Entendendo a crise europeia

Eu enxergo nesta crise um sintoma de uma tendência profundamente enraizada que é perigosa para a Europa e para o mundo. O perigo é que a Europa venha a perder o seu papel de locomotiva econômica, política e cultural do desenvolvimento global – um papel que ela vem desempenhando no decorrer – pelo menos – dos três últimos séculos.

Tais temores e as previsões do “declínio da Europa” estão se disseminando cada vez mais por vários motivos.

Muitos países anteriormente atrasados do Terceiro Mundo estão dando grandes passos em termos de crescimento econômico. Em breve eles provavelmente exigirão posições importantes na economia mundial, o que relegará cada vez mais o Ocidente a “papéis de coadjuvante”.

Nas últimas três ou quatro décadas, os produtos feitos no Ocidente vêm perdendo a corrida da competitividade para aqueles produtos fabricados no Oriente e em outras regiões em desenvolvimento. E não se trata mais apenas de produtos têxteis, roupas e sapatos. O que se presencia é um sucesso cada vez maior em indústrias como a de maquinários, construção naval, equipamentos eletrônicos, automóveis e softwares – indústrias sobre as quais, no passado, o Ocidente detinha praticamente um monopólio.

Isso provocou a fuga de capital e de indústrias do Ocidente e índices de desemprego persistentemente elevados na Europa – índices que foram agravados pela crise. Caso este processo continue, a Europa enfrentará uma crise política que poderá fragilizar a sua conquista histórica mais importante – a estabilidade democrática.

A isso deve-se acrescentar o envelhecimento rápido da população da Europa. A proporção de cidadãos em idade produtiva no continente está caindo rapidamente. Em breve eles não serão mais capazes de sustentar a população que não faz parte do mercado de trabalho e, de forma mais geral, o estilo de vida ao qual os europeus estão acostumados.

Portanto, existem profundas tendências subjacentes por trás do problema econômico e fiscal da Europa. Mas os remédios que atualmente estão sendo propostos dizem respeito principalmente às finanças públicas e constituem-se em receitas para “cortes dolorosos” em pensões, benefícios sociais e outras despesas orçamentárias. E esse caminho está repleto de grandes perigos.

Os europeus têm saído às ruas para protestar contra os cortes drásticos dos gastos sociais. Os seus protestos são compreensíveis. Eles acreditam que a crise não foi provocada por pensões ou benefícios sociais. Eles responsabilizam as políticas econômicas fracassadas e os lucros extremamente elevados e a ganância daqueles indivíduos que ainda estão recebendo elevadíssimos bônus e dividendos enquanto os cidadãos comuns apertam os cintos.

E tampouco existe uma solução rápida para os problemas demográficos da Europa. A entrada contínua de imigrantes com diferentes mentalidades, culturas e fés é acompanhada de um crescimento da xenofobia e de uma sensação de ameaça à identidade nacional.

A Europa está estressada por todos os tipos de problemas: tanto aqueles provocados pelo curso natural dos acontecimentos quanto aqueles que poderiam ter sido evitados. Consequências políticas, e não apenas econômicas, são inevitáveis. Uma delas é a possibilidade de que outros centros de poder assumam a liderança na comunidade mundial, nações que muitos europeus veem com respeito, mas também com apreensão.

“Perder a Europa” deveria ser algo de inconcebível. Isso, temo eu, seria um fim real – e não apenas metafórico – da história. Esta é uma história para a qual a Europa, apesar dos seus fracassos e tragédias, contribuiu bastante ao criar os atualmente universais valores da civilização e da cultura.

Que tipo de Europa poderia reconquistar a liderança mundial? Chegou o momento de pensar na construção de uma grande comunidade intercontinental de Vancouver a Vladivostok, com a participação integral dos Estados Unidos e da Rússia. Esta é a única chance que a Europa teria de ser uma força influente e estabilizadora no mundo.

Após o fim da Guerra Fria, os europeus cometeram um grande erro ao recusarem-se a procurar implementar uma integração total com a Rússia, país que é, e que se considera, uma parte inseparável de uma Grande Europa.

 

Nós, também, podemos ser parcialmente responsabilizados por termos “desconectado” a Rússia e a Europa. Este erro precisa ser corrigido. O processo de modernização que está tendo início agora na Rússia nos proporciona uma oportunidade única para implementarmos tal correção. A Rússia está passando por uma mudança real de rumo. Ela está abandonando o modelo econômico baseado em recursos naturais, reequipando as suas indústrias e estimulando setores empresariais inovadores capazes de impulsionar o vasto potencial intelectual do país.

Conforme eu declarei com frequência, uma bem sucedida modernização econômica e tecnológica exige a reformulação das estruturas políticas e uma aceleração dos processos que formam a democracia. Isso não enfraquecerá a Rússia, conforme muita gente teme no nosso país. Tal iniciativa criará novas oportunidades para avanços e para a construção de uma forte comunidade transnacional que não procurará confrontar o resto do mundo. Ao contrário, isso tem como objetivo consolidar o potencial da Rússia, da Europa e dos Estados Unidos para o benefício de todos.

Neste momento, nós necessitamos que os líderes da Rússia, dos Estados Unidos e da União Europeia deem um sinal claro de que eles entendem a necessidade de tal consolidação. Caso deem tal indicação, eles precisarão trabalhar no sentido de formular os detalhes deste Grande Projeto.

Tradutor: UOL

Mikhail Gorbachov

Mikhail Gorbachov foi o último presidente da extinta União Soviética e um dos responsáveis pelo fim da guerra fria. Ambientalista, Gorbachov já foi agraciado com o prêmio Nobel da paz.

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