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A Cara da Democracia

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Nada a celebrar: crise militar e a nostalgia do golpe

Colunista do UOL

31/03/2021 15h11

Por Anaís Passos*

Golpes de estado, rupturas institucionais, fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF): o vocabulário que julgamos enterrado, em pleno 2021, retorna à esfera da política. Assim como ocorreu em maio de 2020, cabe novamente aos militares "tranquilizar" a população de que não haverá um golpe de estado. Enquanto sociedade, não temos nada a celebrar quando os militares passam a ser os garantidores da normalidade institucional em um regime democrático.

A troca de seis ministros promovida por Bolsonaro ocorre em meio a uma série de indicadores que mostram que a vida dos brasileiros e brasileiras piorou no último ano: taxa de desemprego recorde, a inflação que corrói os salários, a ausência de leitos e de insumos médicos nos hospitais para atender aos doentes da covid-19 e famílias destroçadas pela morte de seus familiares. Diante da sua inabilidade política, o auxílio emergencial não é suficiente para segurar a aprovação do atual presidente.

Com um olho nas eleições presidenciais de 2022 e outro nas investigações sobre a prática das rachadinhas quando era deputado federal, Bolsonaro quer fidelizar seus apoiadores mais radicais e blindar a presidência dos inúmeros pedidos de impeachment que tramitam no Congresso e no Senado. E, claro, impedir que seus filhos Flávio e Carlos sejam presos pelo desvio do dinheiro público. Como um bom autoritário, resta ter a ameaça do uso da força na mesa de negociações. Para isso, o apoio das polícias militares e das Forças Armadas, além do centrão, é crucial.

Quando realizei entrevistas no início do ano passado com militares da ativa e da reserva sobre a participação dos mesmos no governo, a diferença entre instituição e indivíduo era um ponto constante em suas observações. A demissão do Ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, seguida da renúncia conjunta dos comandantes militares do Exército, Marinha e Aeronáutica, revela o que os analistas de relações civis-militares há tempo diagnosticam: a separação entre as Forças Armadas e os militares que participam do governo é frágil e tende a se deteriorar conforme o tempo. Pela natureza da sua função, as Forças Armadas são uma instituição total, expressão cunhada por Erving Goffman, na medida em que a socialização dos seus membros é intensa em anos cruciais para a formação do indivíduo.

Ainda que militares insistam no papel institucional das Forças Armadas, e que a imprensa tenha convencionado chamar esse setor de "moderador", é certo que uma geração de militares, formada durante o regime militar, não adere aos valores democráticos. Inclusive tem simpatia pelas propostas de Bolsonaro: defesa do golpe de 1964, isolamento do campo da esquerda, justificativa de práticas de exceção em nome da normalidade política e, claro, atendimento à agenda corporativa dos militares. Buscando consolidar seu apoio na caserna, o Executivo concedeu aumentos salariais, abonos para aqueles que participam de cargos na administração federal e manteve os gastos da defesa num momento de contingenciamento dos demais gastos públicos. Generais do Exército com notoriedade, que participam da atual administração, já endossaram publicamente posições antidemocráticas.

O elemento mais célebre do grupo de oficiais antirrepublicanos é o atual vice-presidente Hamilton Mourão, que se referiu a Carlos Brilhante Ustra, coronel acusado de mais de 500 crimes de tortura durante o regime militar, como "um homem de honra" que "respeitava os direitos humanos dos seus subordinados". O general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança da Presidência, já sugeriu adotar um novo Ato Institucional n. 5 (AI-5) em caso de radicalização da esquerda no país.

Por sua vez, o general Fernando Azevedo e Silva, quando era Ministro da Defesa,sobrevoou em helicóptero, ao lado do presidente, uma manifestação pró-governo com faixas contrárias ao STF e favorável a uma intervenção militar em maio de 2020.Tratando-se ou não de uma minoria, pois não temos dados para verificar a proporção dessas atitudes entre membros das Forças Armadas, o grupo antirrepublicano das Forças Armadas tem afinado os vínculos com a atual administração.

Essa politização é um risco para a hierarquia e a disciplina militar. O próprio ex-comandante do Exército, General Villas Boas, já alertou para o risco de politização das Forças Armadas após as eleições de 2018. O mesmo general, vale ressaltar, que publicou um tweet em abril de 2018 sobre o julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, notando que ele se manteria "atento às suas missões institucionais". Além disso, esses gestos acenam para o uso político de outras corporações - como é o caso das polícias militares, abertamente favoráveis a Jair Bolsonaro.

A democracia não se sustenta com líderes que não aderem aos seus princípios: a igualdade e a inclusão política. Quando as Forças Armadas passam a fazer parte da disputa de interesses entre os atores políticos, não há mais controle civil, mas sim um controle político que é dependente da identificação dos militares com a ideologia oficial. Há, portanto, mais elementos em comum entre Hugo Chávez e Jair Bolsonaro do que o presidente gostaria de admitir. Temos um número recorde de ministros militares desde a redemocratização, incluindo em cargos estratégicos como a Casa Civil. Como garantir a neutralidade política das Forças Armadas quando militares da ativa são porta-vozes do governo, participando de cargos políticos no primeiro escalão?

Não há nada a comemorar sobre a renúncia conjunta dos comandantes militares. Esse ato é sintomático da deterioração do controle civil sobre as Forças Armadas. Vale lembrar que esse processo é anterior ao atual governo. O ex-presidente Michel Temer nomeou um general do Exército, Joaquim Silva e Luna, como ministro da Defesa, rompendo com o histórico de civis comandando a pasta desde a sua criação em 1999.

O argumento de que os militares seriam superiores aos civis, eficientes e pouco suscetíveis à corrupção, foi utilizado em inúmeras situações de ruptura institucional, como em 1937 e 1964. Essa retórica também foi utilizada em 2018 para justificar o retorno dos militares à política. Infelizmente, não sabemos quando os militares irão regressar aos quarteis.

*Anaís Passos é professora de Sociologia e Ciência Política da UFSC e suas áreas de pesquisa são: políticas de segurança, Forças Armadas, sociologia política comparada.