Topo

Amaury Ribeiro Jr

Rio assoreado, boi "bombeiro" ausente: o processo que incendiou o Pantanal

Onça-pintada descansa em área queimada às margens do rio Três Irmãos, no Parque Estadual Encontro das Aguas, no Pantanal - Lalo de Almeida/Folhapress
Onça-pintada descansa em área queimada às margens do rio Três Irmãos, no Parque Estadual Encontro das Aguas, no Pantanal Imagem: Lalo de Almeida/Folhapress

01/10/2020 04h02

Embora tenha ganhado destaque em 2020, os incêndios do Pantanal estão diretamente ligados à ação predatória da agropecuária que teve início há mais de 40 anos, conforme especialistas ouvidos pela coluna.

Eles apontam que todo o combustível (material orgânico seco), que tem dificultado o combate ao fogo começou a se acumular na planície pantaneira com a chegada de produtores rurais de outros estados no final da década de 70 no planalto de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.

Os fazendeiros recém-chegados foram acusados de destruir as matas ciliares e provocar o assoreamento do rio Taquari, que nasce na divisa de Mato Grosso com Mato Grosso do Sul e desemboca na planície pantaneira.

"Toda destruição [no Taquari] alterou o ciclo das cheias. As fazendas foram abandonadas porque passaram a ficar permanentemente alagadas devido ao assoreamento. Com a seca atípica deste ano, a vegetação, que estava submersa, secou virando um verdadeiro paiol", afirma Ângelo Rabelo, presidente da organização não governamental Fundação Homem Pantaneiro.

Rabelo guarda no corpo cicatrizes devido à sua luta pela defesa do Pantanal. Na década de 70, então policial militar florestal na ativa, ele foi atingido nos braços e no rosto durante uma troca de tiros com um grupo de "coureiros" (caçadores de jacaré). Atualmente, ele trabalha no combate às queimadas na região da Serra do Amolar, no Mato Grosso do Sul.

Passados 40 anos do início da destruição do planalto, o leito do rio Taquari, tomado por bancos de areia, praticamente não existe mais. As águas saíram do caminho natural do rio para se espalhar pelas áreas de pastagens e propriedades dos colonos ribeirinhos, que viviam da pesca na planície.

Só chuva pode controlar incêndio, diz ex-chefe da Embrapa

De acordo com o presidente da Sociedade de Defesa do Pantanal (Sodepan), uma organização não governamental sediada em Corumbá (MS), o veterinário Nilson de Barros, o rio Taquari passou a receber por dia, fora do Pantanal, cerca de 30 mil toneladas de areia, terra, material orgânico e inseticidas. Todo esse material acabou chegando à bacia pantaneira.

"As águas desviaram do leito criando os chamados arrombados (terras que passaram a ficar alagadas). Hoje já passam de 1 milhão de hectares as áreas alagadas pelo Taquari. Consequência: muitos fazendeiros da planície pantaneira, que nada tinham a ver com a devastação, tiveram de abandonar suas áreas", afirma Barros, que é proprietário rural e foi chefe da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em Corumbá.

Para Barros, o que está ocorrendo no Pantanal são incêndios e não queimadas. "Queimada é uma ação de manejo controlada utilizada em todo o mundo em períodos menos secos para evitar que o mato cresça e vire combustível para grandes incêndios. Apagar este atual incêndio, que é uma coisa muito maior, transformou em uma missão impossível o trabalho dos bombeiros. O fogo só vai ser controlado com a chegada das chuvas."

O presidente da Sodepan está entre os pesquisadores e ambientalistas que acreditam que o boi pantaneiro, "chamado de boi bombeiro", ajuda na prevenção das queimadas.

Boi age como especialista em prevenção contra fogo

"Esse boi come o pasto, evitando que a vegetação cresça durante o período da seca e se transforme num verdadeiro barril de pólvora. Só que com a seca atípica, esse boi não estava lá para baixar a vegetação porque as fazendas foram abandonadas", afirma Barros.

A tese tem respaldo no meio científico. O pesquisador e professor de zootecnia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Arnildo Pott, que inventou a expressão "boi bombeiro", conta que, durante um experimento, a retirada do gado na fazenda experimental da Embrapa de Corumbá na Nhecolândia, região central do Pantanal, provocou um incêndio incontrolável no ano seguinte na propriedade.

"Isso ficou bem claro neste ano. A região que anteriormente ficou mais tempo alagada, a Serra do Amolar, é a que mais está queimando. Além de baixar o pasto, o boi cria trilhas que funcionam como se fossem um aceiro no combate ao fogo", afirma Pott, doutor em ecologia pela Universidade Queensland na Austrália e ex-pesquisador da Embrapa. O aceiro é o desbaste de um terreno para separar dois lados de uma vegetação e evitar propagação de incêndios.

A exemplo de Barros, o pesquisador afirma que o que está ocorrendo no Pantanal são incêndios, e não queimadas.

Fazendeiros são investigados por possíveis incêndios orquestrados

Os pesquisadores acreditam que uma segunda onda de chegada de fazendeiros à região, no início dos anos 2000, de herdeiros ou investidores de outros estados, acabou também influindo no equilíbrio do ecossistema do Pantanal. Para eles, a mudança do perfil dos fazendeiros vem prejudicando a harmonia entre a pecuária e o meio ambiente.

"O fazendeiro e o peão pantaneiro tradicionais sempre viveram em harmonia com Pantanal", afirma Barros.

Coincidência ou não, fazendeiros de outros estados estão sob investigação da Polícia Federal e da Polícia Civil de Mato Grosso do Sul sob a acusação de terem mandado colocar fogo em suas propriedades na região da Serra do Amolar. Barros afirma que também as margens do rio Paraguai passaram a ser ocupadas por ex-peões e moradores da cidade que ganham a vida vendendo iscas para pescarias. Segundo Barros, a presença humana favorece o princípio dos incêndios.

As suspeitas sobre o início dos incêndios também voltam a respingar nos fazendeiros que iniciaram a destruição das matas ciliares na região do planalto adjacente ao Pantanal.

De acordo com as imagens de satélite analisadas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e repassadas à Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso, as queimadas que destruíram 90% dos 19 mil hectares da terra indígena Baía dos Guató teriam começado em fazendas às margens do Rio São Lourenço.