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Amaury Ribeiro Jr

Cachaça contra a covid-19: um boteco 24 horas aberto no interior de MG

Valdir Silva (de vermelho) e os amigos no Bar do Sandoval, aberto 24 horas em Itaúna (MG) - Amaury Ribeiro Jr//UOL
Valdir Silva (de vermelho) e os amigos no Bar do Sandoval, aberto 24 horas em Itaúna (MG) Imagem: Amaury Ribeiro Jr//UOL

Colunista do UOL

21/01/2021 04h01

Nem mesmo a pandemia, que já registrou mais de 13 mil óbitos em Minas Gerais, é capaz de fechar o Bar do Sandoval, que funciona 24 horas todos os dias desde 1956 em Itaúna, município localizado a cerca de 85 km de Belo Horizonte. Conhecido por servir comida caseira mineira e cerveja estupidamente gelada, o boteco e restaurante está localizado na Praça da Lagoinha, um dos cartões postais da cidade.

"Não fechamos nem para reforma e nem durante sexta-feira da paixão", contou ao UOL Sandoval Campos 79 anos, sócio do irmão Odilon Campos no estabelecimento. Sandoval começou a trabalhar na década de 60 no bar como garçom. Há 32 anos, após juntar o dinheiro das gorjetas, comprou o estabelecimento de um policial do extinto Dops (Departamento de Ordem Política e Social) de Belo Horizonte "conhecido como Fagundes".

Trabalhando de madrugada desde dos tempos em que era garçom, Sandoval se orgulha pelo bar ter ganhado fama por reunir pessoas das várias tribos: políticos, empresários , travestis, gays, policiais, prostitutas, operários, entre outros.

Com seu tradicional bigodão, que faz lembrar o ator norte-americano Charles Bronson, Sandoval só não tem paciência com os ""noiados" (viciados em crack) que entram constantemente no bar para pedir dinheiro para os fregueses.

Na última sexta-feira, o colunista presenciou Fagundes, apesar da idade avançada, tirar a força três moradores de rua que pediam dinheiro aos fregueses da casa.." Não dá para dar moleza para esses vagabundos", disse do UOL, Sandoval, que guarda um porrete de madeira para se defender "se a coisa apertar".

Acatando determinação da prefeitura, que estipulou o funcionamento dos bares e restaurante até às 23 horas, Sandoval foi obrigado a fazer uma adaptação. Durante a madrugada, ele passou a atender os clientes que ficam na praça por meio de uma janela que permanece aberta. "Mas fechar, nunca. O cliente pode vir a qualquer hora da madrugada que não vai ficar sem sua cervejinha gelada e sem comida", garante Sandoval.

Por meio de sua assessoria de imprensa, a Prefeitura de Itaúna confirmou que está autorizado o funcionamento de bares e restaurantes até às 23 horas sem restrição para venda de bebidas alcoólicas. A assessoria informou ainda que está autorizado também o serviço de delivery durante a madrugada.

"Esse caras da prefeitura são uns gênios. Descobriram que o vírus só ataca de madrugada", ironizou Odilon ao comentar a medida da gestão municipal.

Sandoval Campos, 79: começou como garçom e acabou comprando o bar, há 32 anos - Amaury Ribeiro Jr/UOL - Amaury Ribeiro Jr/UOL
Sandoval Campos, 79: começou como garçom e acabou comprando o bar, há 32 anos
Imagem: Amaury Ribeiro Jr/UOL
Freguês vai "oito vezes por semana" ao bar

De acordo com a prefeitura, é obrigatório o uso de máscara, gel e o distanciamento entre as mesas. Uma determinação que os donos do bar, Sandoval e Odilon, ignoram. As máscaras somente são usadas pelos garçons e uma minoria de clientes. Já o distanciamento entre mesas, nem pensar.

"Que distanciamento, que nada. O Sandoval é conhecido pelo calor humano. Sempre foi o local que depois das festas reúne todo tipo de gente. É o único lugar que fica aberto durante a madrugada", disse o empresário e assessor político Valdir Silva, 72 anos.

Pelo menos "oito vezes" por semana, Valdir se reúne no início da noite com os amigos Jorge do Carmo, 62, e Geraldo Aparecido Damaceno, 57, no bar. A exemplo dos amigos, Valdir, que diz ter servido no Centro Informação do Exercito (Ciex) durante a ditadura militar (1964-1985), e é eleitor do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Mas não gosta muito de falar de política, tampouco de atacar os opositores do governo.

A mesa usual de Valdir está aberta para todos que quiserem se sentar. Na última sexta-feira, por exemplo, o presidente da Câmara Municipal, vereador Alexandre Campos (DEM) sentou-se ao lado de Valdir enquanto aguardava seu pedido de comida para viagem ficar pronto.

Fachada do Bar do Sandoval chegou a funcionar sem porta. No enterro do pai, donos se revezaram para manter o local aberto - Amaury Ribeiro Jr//UOL - Amaury Ribeiro Jr//UOL
Bar do Sandoval chegou a funcionar sem porta. No enterro do pai, donos se revezaram para manter o local aberto
Imagem: Amaury Ribeiro Jr//UOL
Cachaça contra a covid-19

Ex-assessor e apadrinhado político do senador Rodrigo Pacheco (DEM), candidato a presidente da Casa, Campos contou que o local, onde costuma almoçar quase todos os dias, até o mês passado não tinha nem porta. "Como nunca fechava, nunca não precisava de porta. Me lembro que durante o enterro do pai deles ,Sandoval e o Odilon se revezaram para ir no velório porque o bar, que não tinha porta, não podia fechar", contou o vereador, um dos poucos clientes que usavam máscaras.

Ao contrário de Campos, Valdir e os amigos permaneceram a noite toda no bar sem máscara. "Não dá beber com máscara. e no mais a cachaça é um santo remédio contra o vírus", afirmou Damaceno. O empresário ainda está em dúvida se vai tomar a vacina contra a covid-19, por acreditar, a exemplo do presidente, que possa sofrer uma mutação genética ao tomar o medicamento (nota do editor: bebidas alcoólicas não previnem a covid-19, e as vacinas contra a doença não provocam mutações).

Valdir se orgulha de frequentar o bar desde a década de 50 e de conhecer o perfil dos frequentadores da casa. "Lembro quando criança de ter acompanhado a copa de 1958 no bar com um radinho de pilha. Mas a partir das 23 horas é preciso estar atento porque o clima costuma esquentar".

A profecia se concretizou perto das 23 horas. Portadora do vírus do HIV, a garota de programa Carla Silva foi atingida com gel nos olhos, lançado por uns frequentadores já alterados devido ao consumo de bebida.

Ao pedir dinheiro aos fregueses para comprar uma cerveja, Carla acabou também sendo expulsa por Sandoval, o que provocou a indignação em um amigo de Valdir, que acabara de se sentar à mesa. "Ela não tem culpa de estar doente. Não está fazendo mal a ninguém", disse o amigo que pediu para seu nome não ser citado para não criar inimizade com os donos do bar.

"Esquerdinha, vamos embora"

Enquanto chorava do lado de fora, Carla que contou que contraiu a aids há 17 anos. "O cara que me contaminou já foi eliminado por ter passado a doença também para uma menina de 15 anos", disse. Ela afirmou ainda que não teme que o uso da bebida possa cortar o efeito do coquetel usado para controlar a doença. A conversa foi interrompida por Valdir, que se ofereceu para dar uma carona ao colunista.

"Esquerdinha.. Vamos embora. Te dou uma carona para você não ser assaltado pelos zumbis (usuários de drogas) que à essa hora tomam conta das ruas. Se morrer, corre o risco da polícia dizer que o assassino sou eu", afirmou, em tom de brincadeira. "Anota aí, esqueci de falar do porrete do Sandoval. O Odilon é ainda mais bravo, os noiados nem chegam perto quando ele está lá".