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André Santana

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Com Viola Davis, A Mulher Rei põe o dedo na ferida do terror colonial

Viola Davis interpreta uma guerreira em A Mulher Rei - Divulgação
Viola Davis interpreta uma guerreira em A Mulher Rei Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

21/09/2022 04h00

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A gente não cansa de repetir a frase dita por Ângela Davis, durante sua passagem pela Bahia, na celebração ao Julho das Pretas de 2017: "Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela".

A socióloga e ativista pelos direitos civis dos afroamericanos defendeu que, por estar na base da pirâmide social, as mulheres negras possuem o potencial de desestabilizar toda a estrutura. Uma outra Davis, a Viola, prova que isso é muito possível.

O filme A Mulher Rei, que estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta (22) sacode as estruturas da indústria cinematográfica e do repertório de representações sobre a história da população negra.

Filme aborda a participação de africanos no tráfico de escravizados. Protagonizado pela vencedora do Oscar, do Emmy e Tony Awards (Tríplice Coroa) Viola Davis, que também atua como produtora ao lado do seu marido Julio Tennon, a super-produção da Sony, é um filme épico, cheio de ação e de reparação histórica.

Viola confirma seu talento na pele da líder das Agojie, exército de guerreiras amazonas do reino do Daomé (atual Benin), na África Ocidental. Com um rigoroso treinamento e muitas privações, incluindo a da maternidade, as guerreiras precisam defender seu povo de outros reinos africanos e das violências impostas pelo colonialismo europeu, que encontra parceria em alguns líderes do continente negro.

A Mulher Rei coloca o dedo nas feridas abertas pelo terror colonial, com seus sequestros, torturas, estupros e mortes, para sustentar o rentável comércio de pessoas que moveu a economia do mundo entre os séculos 16 e 19.

A cineasta norte-americana Gina Prince-Bythewood dirige e também coassina o corajoso roteiro que não esconde a participação de africanos no tráfico negreiro sob comando dos colonizadores europeus. O colonialismo se aproveitou bem das diferenças étnicas e dos conflitos existentes entre reinos para obter a mercadoria mais valiosa naquele período: pessoas negras.

O Brasil, maior porto do mundo a receber seres humanos escravizados e último país a abolir formalmente a escravidão, não poderia ficar de fora da trama colonial dissecada por A Mulher Rei.

Mas a África é muito mais do que a história marcada pelo colonialismo e, em A Mulher Rei, estão muitos dos traços culturais que nos unem ao continente, como os modos de solidariedade, a musicalidade e a religiosidade tão presentes nas comunidades negras do Brasil e de países da diáspora. .

Uma personagem complexa defendida por uma excelente atriz. Enquanto luta contra os reinos vizinhos, a líder Nanisca, interpretada por Viola Davis, tenta convencer seu rei a não participar da captura e comercialização de africanos, "povos irmãos, mesmo que de outras tribos".

Uma personagem que expressa corporalmente uma força bruta e um ímpeto agressivo movido por tantas violências que atravessou ao longo da vida. São essas marcas do passado, algumas retornadas de forma devastadora, que proporcionam a Davis, a humanização necessária.

Graças ao talento e entrega de Davis, a grandeza de Nanisca transborda na tela, em raiva, porradas, lágrimas, silêncios e afetos. Cada expectador que pegue o que te cabe, já que o drama narrado por A Mulher Rei pertence a toda humanidade e a cada um de nós.

Se ainda vivemos em uma sociedade estruturada pelo racismo com preconceitos cotidianos e a permanência de uma divisão racial do trabalho, não podemos deixar de voltar os olhos às raízes desta lógica de inferiorização e de exploração de pessoas negras.

Está lá no drama apresentado pelo filme "os traumas coloniais que foram memorizados coletivamente", como nos ensina Grada Kilomba em seu Memórias da Plantação (2008).

Nanisca é o tipo de papel que atrizes negras aguardam para expressarem sua arte. A própria Viola Davis já reclamou repetidas vezes a falta de oportunidade para mulheres negras viverem bons personagens.

Em uma reparação ao racismo de Hollywood, A Mulher Rei traz um elenco majoritariamente formado por mulheres negras e de pele retinta. Algumas delas são atrizes africanas, como Sheila Atim, de Uganda e a jovem atriz Thuso Mbedu, da África do Sul, que divide o protagonismo da história com a veterana Viola.

Agojie inspirou exército feminino de Wakanda. Já tínhamos sido apresentados ao exército de guerreiras africanas em Pantera Negra, já que as Dola Milaje de Wakanda foram inspiradas nas Agojie do Daomé.

Contudo, apesar da importância para a representatividade de pessoas negras e das heranças africanas no cinema, em Pantera Negra as mulheres são meras coadjuvantes nas decisões e disputas pelo reino de Wakanda. Nem a mãe de T-Challa, nem a musa romântica Nakia, desempenha grandes cenas e até a princesa Shuri, que é o verdadeiro cérebro do reino, é tratada com zombaria pelo irmão.

A verdade é que são as Dola Milaje / Agojie, responsáveis pelas épicas cenas de protagonismo feminino em Pantera Negra.

Agora elas têm um filme todo para elas. E se destacam em cada frame.

Todos se rendem à soberania das Agojie. Quando elas passam, a população curva os olhos, os traficantes negreiros as temem, as esposas do rei sentem inveja e o próprio monarca não consegue impedir a insubordinação das amazonas do Dahomé.

Elas são fortes, corajosas, impetuosas, mas vivem o drama de serem as mais vitimadas pela violência colonial, com suas práticas de agressão, estupros, afastamento das famílias e troca dos afetos amorosos pela fúria por sobrevivência.

As amazonas do Dahomé estavam na base da pirâmide do colonialismo e, portanto, ousaram movimentar sua estrutura.

Atrizes com a cor da pele da Viola Davis tentam romper o lugar de invisibilidade e sujeição que o cinema e a sociedade ainda reservam às mulheres pretas. E mesmo sem querer, todo o mundo se movimenta com elas.