André Santana

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Opinião

Cem anos de Batatinha, autor de sambas 'sofrência' gravados por Bethânia

No dia 5 de agosto se completaram cem anos do nascimento de um dos maiores criadores da música popular brasileira, o sambista Oscar da Penha, o Batatinha.

Com um modo muito particular de cantar a tristeza na cadência do samba, na melodia do jazz e dos lamentos do blues, produziu uma importante obra ainda a ser conhecida e divulgada.

Nascido em Salvador em 1924, Batatinha morreu em 3 de janeiro de 1997, na mesma cidade, sem receber o merecido reconhecimento nacional, mesmo tendo criado pérolas do cancioneiro do samba.

Suas canções foram gravadas por artistas como Beth Carvalho, Chico Buarque, Caetano Veloso e Maria Bethânia, além do pioneiro Jamelão, ícone da Mangueira, que gravou o samba Jajá da Gamboa, de Batatinha, no final da década de 1950.

Entre as composições mais gravadas está Hora da Razão, que já recebeu várias interpretações para o samba que determina que "sofrer também é merecimento". Puro talento de uma artista que fez da sofrência sua inspiração e da melancolia sua arte.

"Se eu deixar de sofrer / Como é que vai ser para me acostumar / Se tudo é carnaval, eu não devo chorar / Pois eu preciso me encontrar"

Sambas com tristeza e beleza

O poeta Vinicius de Moraes escreveu em Samba da Benção que 'pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza'. Já Caetano Veloso compôs 'Desde que o samba é samba' na qual diz que "a tristeza é senhora" e que "o samba é o pai do prazer. O samba é o filho da dor, o grande poder transformador".

Não é raro que o samba se alimente das desilusões atravessadas pelos sambistas, sejam abandonos amorosos ou mesmo da realidade da vida do pobre cidadão trabalhador, resultando em canções alegres que contagiam e enchem de esperança, fazendo valer o "poder transformador".

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Batatinha, contudo, soube como poucos transformar narrativas tristes em belos sambas, de intensa poesia melódica e versos trágicos. Suas letras narram dores e ausências constantes em meio aos poucos momentos de prazer celebrados pelo poeta. A beleza imposta pela urgência em cantar uma alegria passageira.

Como na canção Depois eu volto, na qual o Carnaval surge como essas horinhas de abandono da tristeza.

"É carnaval / É hora de sambar / Peço licença ao sofrimento / Depois eu volto pro meu lugar / Dona tristeza, dê passagem à alegria / Nem que seja por um dia / Pois respeito sua posição / Mas hoje eu reclamo com toda razão / É carnaval / É hora de sambar"

Na música Conselheiro, parceria com Paulo Cesar Pinheiro, o próprio sambista se declara um "profissional do sofrimento, professor dos sentimentos e do amor, artesão".

Batatinha era diplomado em matéria de sofrer

Já em Diplomacia, composta com J. Lunna, Batatinha se define um "diplomado em matéria de sofrer". A canção, que fez parte da trilha do filme Barravento de Glauber Rocha, deu nome ao álbum lançado em 1998, organizado pelos produtores Paquito e J. Veloso.

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Diplomacia é uma antologia dos sambas de Batatinha, um mergulho nas obras do sambista que gravou apenas outros quatro discos: Batatinha e Companhia Ilimitada (1969), Samba da Bahia, com Riachão e Panela (1975), Toalha da Saudade (1976) e Batatinha, 50 anos de Samba (1993). O projeto é uma forma de reverenciá-lo e apresentá-lo às novas gerações de admiradores do samba.

Pena que o álbum só ficou pronto após a partida de Batatinha, que morreu de câncer pouco depois de ter terminado de gravar as 12 faixas. Há ainda outras canções interpretadas por Maria Bethânia, Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Jussara Silveira e pelos parceiros de sambas da Bahia: Riachão, Nelson Rufino, Walmir Lima e Edil Pacheco.

Bethânia deu voz aos versos trágicos de Batatinha

No documentário "Batatinha e o samba oculto da Bahia", o diretor Pedro Habib reúne depoimentos de artistas que conviveram com Batatinha e que admiravam suas composições. Entre eles, a cantora Maria Bethânia, que destaca a influência do jazz nas melodias e nas composições de Batatinha.

A cantora, que sempre prezou por performances cênicas que valorizam a poesia, ao longo da carreira, incluiu canções do sambista em seus shows e gravações.

Diplomacia está no primeiro disco gravado por Bethânia, em 1965 e foi incorporada ao show Opinião, que Bethânia integrou junto com Zé Keti e João do Vale, em 1965, no Teatro de Arena, no Rio de Janeiro, sendo a estreia nacional da intérprete vinda do Recôncavo da Bahia.

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Em 1971, mais uma vez Maria Bethânia traz os sambas de Batatinha à cena em Rosa dos Ventos - Show encantado, lançado em 1971. O álbum é considerado definidor do estilo cênico teatral da artista, fruto da parceria com o diretor Fauzi Arap (1938 - 2013).

No show, Bethânia apresenta Batatinha como um cara maravilhoso, que faz sambas lindíssimos para o Carnaval.

"Ele faz tudo ao contrário, na minha opinião. Porque carnaval é uma coisa alegre pra cima. A gente se diverte e tal. E os sambas do 'Batata' são tristíssimos. Tem uma melodia maravilhosa, parecida com a melodia de blues e as letras do Batatinha são sensacionais", Maria Bethânia sobre Batatinha.

Depois dessa introdução, Bethânia faz um medley com as canções Imitação, Hora da razão e Toalha da saudade (as duas últimas também parceria com J. Luna).

Diálogo com Fernando Pessoa

No álbum "Drama", de 1972, Bethânia gravou O circo, dos versos "Todo mundo vai ao circo / Menos eu, menos eu / Como pagar ingresso / Se eu não tenho nada / Fico de fora escutando a gargalhada / A minha vida é um circo / Sou acrobata na raça / Só não posso é ser palhaço / Porque eu vivo sem graça

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No show, a música fazia parte da cena em que a cantora recitava o Poema em Linha Reta, de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa.

Nos versos, o poeta lamentava nunca ter conhecido "quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo".

Na voz de Bethânia, o poeta português que diz ter "sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas", encontra um par na sincera tristeza do baiano Batatinha.

"Gosto de Batatinha como gosto da luz da lua, do som do tamborim, do samba em tom menor, das coisas tristes e simples. Batatinha pra mim é uma pessoa rara: um artista", escreveu Maria Bethânia, em 1975, para o álbum "Samba da Bahia".

Já em 1996, Maria Bethânia estreou o show Imitação da Vida, que abria recitando "Imitação", canção de Batatinha:

"Ninguém sabe quem sou eu / Também já não sei quem sou / Eu sei bem que o sofrimento / De mim até se cansou / Na imitação da vida / Ninguém vai me superar".

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A cantora ainda participa da antologia Diplomacia, interpretando Bolero, uma bela canção escrita por Batatinha e Roque Ferreira, sobre os sentimentos de quem vive da cena artística:

Por muitos anos vivi / Do palco ao camarim / Pra você me aplaudir / E se orgulhar de mim (...) / Gastei a ilusão e a pintura / Nessa ribalta de sonhos azuis / Num papel que destrói / Mas seduz

Faltou reconhecimento e retorno financeiro com a música

O nome artístico foi dado na década de 1940, pelo locutor Antônio Maria, de uma rádio em Salvador, quando o jovem Oscar da Penha ainda tentava emplacar o apelido Vassourinha da Bahia, em referência ao músico paulista (1923-1942), que o inspirava e do qual cantava o repertório em suas apresentações.

De origem pobre - o pai era estivador no porto de Salvador - e sem retorno financeiro pela música, Batatinha trabalhou em várias profissões para sustentar sua prole extensa, já que teve 9 filhos com a única companheira de toda a vida, Marta. Assim, enquanto compunha seus sambas, tocando na caixa de fósforo, foi marceneiro e office boy, até se tornar gráfico no jornal Diário de Notícias, do grupo Diários Associados.

A casa onde morou, na Ladeira dos Aflitos, Centro da capital baiana, foi transformado no espaço cultural Tolha da Saudade, administrada pelos filhos e onde é possível assistir animadas rodas de samba, encontros de novos e velhos sambistas e concertos de gêneros menos comerciais como o chorinho.

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Na comemoração do centenário de nascimento de Oscar da Penha, algumas homenagens especiais tentam manter o legado de Batatinha ao alcance de mais pessoas, que possam conhecer a genialidade de um artista que nos ensinou que é possível extrair beleza da dor, especialmente, cantando.

"Sofrimento e padecer / Todos lamentam, mas só eu sei responder / Luto por um pouco de conforto / Tenho o corpo quase morto / Não acerto nem pensar / Mesmo com tanta agonia / Ainda posso cantar" (Só eu sei, Batatinha e J. Luna).

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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