André Santana

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Justiça portuguesa condena mulher negra vítima de violência policial

O Tribunal Criminal de Sintra, cidade da área metropolitana de Lisboa, condenou nesta segunda-feira (1º), a cozinheira Claudia Simões a oito meses de prisão por "ofensa à integridade física qualificada" do agente Carlos Canha, da PSP (Polícia de Segurança Pública). O caso ocorreu em janeiro de 2020, quando a polícia foi chamada por um motorista de ônibus após uma discussão com uma passageira por conta do cartão de passe esquecido pela filha dela de oito anos.

As imagens que circularam na imprensa portuguesa e nas redes sociais mostram o agente Carlos Canha com o corpo sobre Claudia, que se encontra imobilizada no chão, e é esticada pelo cabelo. Chama a atenção também as marcas de agressão no rosto da cozinheira e as denúncias feitas por testemunhas sobre o uso excessivo da força pelo policial.

Nesses quatro anos, organizações e ativistas denunciaram o racismo e a xenofobia tanto da PSP quanto da justiça portuguesa na condução do caso, que se soma a outras acusações de violência institucional nas ações policiais em bairros sociais, como Amadora, de maioria negra e de imigrantes, onde Claudia foi agredida. Ela própria, à época com 42 anos, uma mulher negra, com cidadania portuguesa e angolana.

Nenhuma das imagens ou relatos foram suficientes para sensibilizar a juíza do caso, Catarina Pires, que declarou Claudia Simões culpada por morder o agente policial e a considerou "impetuosa", "não colaborante", "exaltada", "revoltada" e "possante".

Claudia afirmou que se não mordesse, seria morta

A vítima afirma legítima defesa, pois estava sendo sufocada pelo agente e corria risco de morte. "Se não lhe mordesse a mão e o braço, morreria. Ele estava a sufocar-me. Não morri sabe Deus como", disse Cláudia Simões em entrevistas à época do ocorrido. Ela também alega ter sido insultada e espancada na viatura. Tudo presenciado pela filha de apenas oito anos de idade.

Imagens da agressão a Claudia Simões causaram revolta e acusações de racismo e xenofobia
Imagens da agressão a Claudia Simões causaram revolta e acusações de racismo e xenofobia Imagem: Ana Baião

Um protesto, em frente ao tribunal, demonstrou indignação com o desfecho do caso. As ativistas destacaram o fato da juíza ter absolvido Carlos Canha das acusações de detenção ilegal e agressão contra Claudia Simões, mas condenado o mesmo agente a três anos de prisão por ter algemado, detido ilegalmente e agredido brutalmente dois homens negros que testemunharam todo incidente no ponto de ônibus.

"Terá Carlos Canha dupla-personalidade? Terá sido anjo e carrasco na mesma noite? (...) Cláudia Simões, as pessoas que presenciaram a ocorrência, que filmaram ou que se insurgiram acabam por ser responsabilizadas pelo descontrole de Carlos Canha", escreveu a socióloga Cristina Roldão, em um texto no qual questiona as 'Mundividências Judiciais'.

Também foram absolvidos os agentes João Gouveia e Fernando Rodrigues, que respondiam por abuso de poder e participação na ação que resultou na violência contra Claudia Simões.

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Para entidade, Justiça condenou a vítima

Uma das filhas de Claudia Simões leu um manifesto para a imprensa que cobriu o julgamento: "Estávamos longe de imaginar que, depois do que fizeram à nossa mãe, no dia 19 de janeiro de 2020, ela fosse retratada neste tribunal como selvagem, arrogante e exagerada, mesmo perante todas as evidências. A vítima não pode ser transformada em culpada. Embora cansados, anunciamos que recorreremos desta sentença, pela minha mãe e por todas as pessoas que já estiveram ou possam estar a passar pela mesma situação", afirmou.

Em nota, a organização portuguesa SOS Racismo declarou que a Justiça portuguesa resolveu dar sanção à vítima e poupar os carrascos. "Neste julgamento, o sistema tomou um lado e duplicou a força da violência e racismo institucional a que Cláudia Simões foi sujeita, naturalizou e legitimou as práticas de violência racistas das forças policiais e, assim, voltou a desproteger e, pior ainda, a sancionar mais uma das suas vítimas".

A entidade acusa ainda que, ao invés de Cláudia Simões ter sido cuidada e amparada pelo Estado, sofreu "desumanização", em dolorosas sessões do seu julgamento transformadas num "tribunal dos horrores, onde ela foi sistematicamente achincalhada, humilhada e discriminada e psicologicamente".

Juíza desconsiderou alegações de racismo

Na leitura da sentença final, a juíza fez questão de desconsiderar as acusações feitas pelos movimentos antirracistas, por setores da mídia e da opinião pública que denunciaram a violência racista e xenófoba no caso. "A condenação de Cláudia Simões é a prova de que a Justiça em Portugal tem cor e que o racismo goza de proteção institucional. Este veredito normaliza a violência policial racista", lamentou o SOS Racismo, que atua desde 1990 na proteção às populações imigrantes e das minorias étnicas na sociedade portuguesa.

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Tanto a condenação de Claudia Simões como a de Carlos Canha foram "suspensas na execução", o que significa que os condenados cumprirão a pena em liberdade por um período determinado e, caso não cometam nenhum crime durante esse período, a pena de prisão não será executada. Os dois ainda podem recorrer das condenações.

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