André Santana

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Opinião

Tradição bicentenária celebra 'boa morte' e glória de Maria com fé e samba

Todos os anos, no mês de agosto, a cidade de Cachoeira, no Recôncavo da Bahia, celebra o encontro entre as manifestações culturais e religiosas da população negra e um dos mais importantes dogmas da Igreja Católica.

No dia dedicado à Nossa Senhora da Glória, 15 de agosto, a população cachoeirana reverencia também Nossa Senhora da Boa Morte, em uma devoção única e rica em simbolismos.

Ambos os títulos fazem referência ao 'mistério da assunção', que na fé católica simboliza a crença de que Maria, a mãe de Jesus, ao morrer teve seu corpo elevado ao céu, onde foi coroada rainha. Portanto, a assunção de Maria expressa sua glória diante da morte.

Os rituais de celebração que fazem de Cachoeira um espaço sagrado, atraindo olhares do mundo inteiro, são realizados há mais de 200 anos pela Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, uma entidade criada por mulheres negras ainda no período da escravidão.

Além de preservar práticas religiosas, a irmandade servia como espaço de auxílio mútuo entre as pessoas negras, além de ser responsável pela compra da alforria de suas integrantes e outros negros escravizados.

Duplo pertencimento: catolicismo e Candomblé

Ainda hoje a confraria se mantém firme no propósito de defender as heranças culturais negras, combater o racismo e a intolerância religiosa. As irmãs, em sua maioria mulheres acima de 60 anos, têm em comum o acolhimento da fé católica associada à religiosidade do candomblé, ao qual também são filiadas.

É o caso da atual presidente da Irmandade, Cleuza Maria Santana Santos, 68 anos, católica praticante, coordenadora da Pastoral Afro e também filha de santo do Hunkpame Ayono Huntoloji, terreiro de candomblé da nação Jeji Mahin, em Cachoeira, onde exerce, há 40 anos, a função de ekedji, uma auxiliar direta da mãe de santo no cuidado às entidades (voduns).

Eleita em 2022 pelas demais irmãs ao cargo de presidente, Dona Cleuza entrou na Irmandade em 2007 como noviça, cumprindo seu período de preparação e observação das práticas das irmãs mais velhas. Até chegar em 2014 ao posto de "irmã de bata", como são chamadas as senhoras que efetivamente integram a irmandade, tomando parte das decisões e encaminhamentos da entidade.

A sambadeira Dona Dalva Damiana, 96 anos, irmã da Irmandade da Boa Morte de Cachoeira e doutora honoris causa pela UFRB
A sambadeira Dona Dalva Damiana, 96 anos, irmã da Irmandade da Boa Morte de Cachoeira e doutora honoris causa pela UFRB Imagem: Any Manuela Freitas


Além da presidente, na firme hierarquia da Irmandade, mantida nesses dois séculos, há figuras importantes como da juíza perpétua exercida pela irmã mais longeva, atualmente ocupado por Dona Maria da Conceição de Jesus, Mãe Dazinha, de 108 anos. Já Dona Lindaura Paz dos Santos, 87 anos, é a segunda irmã com mais tempo de irmandade. São 55 anos tanto de iniciação no Candomblé como também de dedicação à Irmandade da Boa Morte, tendo passado pelas funções de escrivã, tesoureira, provedora e procuradora geral.

Cinco dias de ritos relembram a morte e assunção de Maria

Nos cinco dias de festividades, de 13 a 17 de agosto, as irmãs da Boa Morte dão mostras efetividades de fé, resistência, solidariedade e, principalmente, de diálogo entre culturas e modos de fé. A rigorosa devoção à Maria, em uma passagem emblemática da sua trajetória de santidade, encontra espaço para tradições negras mantidas no Recôncavo como o samba de roda e a distribuição de caruru, prato típico da culinária afro-baiana e uma prática importante da religiosidade de matriz africana.

Nesses dias, as ruas da histórica cidade às margens do rio Paraguaçu é cenário para que os fatos relacionados à assunção de Maria sejam relembrados e encenados com missas, procissões, louvores e festa, muita festa, ao modo do povo do Recôncavo. As vestimentas litúrgicas das irmãs, com torsos, turbantes e balangandãs, revelam uma tradição de fé e riqueza estética criada em período de muita escassez e violência colonial.

No ritual, repetido todos os anos, as devotas usam branco no primeiro dia de louvores, dia 13 de agosto, com uma imagem de corpo inteiro de Nossa Senhora representando a sua partida, tão como um velório. Neste dia é realizada uma ceia e também são lembradas as irmãs já falecidas, como as juízas perpetuadas que marcaram seus nomes na história da irmandade, a exemplo de Estelita Souza Santana, falecida em 2012, aos 105 anos de idade, e Narcisa Cândida, conhecida como Mãe Filhinha, que faleceu em 2014, aos 110 anos.

No segundo dia, as irmãs celebram a 'dormitação' de Nossa Senhora, que se refere ao sono de Maria antes de sua ascensão, o que significa que, para os católicos, ela não morreu, apenas dormiu. As irmãs expressam o luto, caminhando silenciosamente pela cidade, utilizando roupa preta e uma espécie de véu cobrindo parte do rosto, sem nenhum acessório.

Já no dia 15 de agosto, finalmente a glória de Maria é festejada com alvorada, missa solene e uma procissão na qual as irmãs utilizam panos vermelhos e joias douradas, brincos e colares compõem o figurino festivo. Ainda há a tradicional valsa, uma feijoada e muito samba de roda, com a participação de diversos grupos culturais da cidade e municípios vizinhos, como São Félix e Santo Amaro da Purificação.

Entre as irmãs, uma doutora do samba

Nos dias 16 e 17, a alegria por Maria ter - assim como seu filho - superado a morte é motivo de mais festa. As irmãs servem cozido (ensopado de carnes e verduras com pirão de farinha de mandioca), caruru e ainda caem no samba. Há, inclusive, entre as integrantes uma doutora em samba, oficialmente reconhecida.

É dona Dalva Damiana de Freitas, de 96 anos, uma das mais importantes referências na preservação da cultura negra do Recôncavo, em especial, do samba de roda, da qual é cantora e compositora.
Em 2012, dona Dalva foi a primeira personalidade a receber o título de doutora honoris causa concedido pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia em reconhecimento à sua dedicação à cultura.

Há quase três décadas, Dona Dalva divide seu tempo entre os afazeres da irmandade em devoção à Nossa Senhora e as apresentações do grupo Samba de Roda Suerdieck, que ela fundou em 1961.

Na fé em Nossa Senhora, pela glória sobre a morte, e no diálogo entre os preceitos católicos e as tradições do candomblé, as senhoras da Irmandade da Boa Morte contam e encenam um país que resiste com devoção e festa.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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