Sairemos melhores da pandemia de coronavírus?
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Você já leu Ailton Krenak? Se não leu, deveria. Nesta semana ele lançou um pequeno livro digital, baseado em três entrevistas recentes e disponível gratuitamente em lojas como a Amazon, intitulado O amanhã não está à venda (Companhia das Letras, 2020). É material para vinte minutos de leitura e dialoga intensamente com seu livro anterior, Ideias para adiar o fim do mundo, publicado no ano passado. Tanto aqui quanto lá, Krenak nos conduz a pensar sobre a humanidade. Existe mesmo uma construção coletiva chamada humanidade? Ou não estamos nem aí para ela?
Krenak tinha trinta e poucos anos quando se envolveu nos debates da Constituinte, em 1987, contribuindo com sua experiência de formulador e ambientalista indígena para garantir, ao menos no papel, um sistema mínimo de proteção às populações indígenas, sua cultura e suas terras. É claro que, após 520 anos de invasão, exploração e extermínio, soa ridículo comemorar um dispositivo legal que garante a demarcação de terras, mas havia, e ainda há, quem considere as demarcações um crime contra o direito à propriedade privada, a livre iniciativa, o empreendedorismo e essa coisa toda. Mais recentemente, em 2015, Krenak viu seu vale do Rio Doce natal ser destruído pelo empreendedorismo e pela iniciativa privada. Ou pela ausência de fiscalização, vá lá.
Krenak tem todos os motivos para ser pessimista. Mas não é o pessimismo que emerge de suas palavras. O que elas nos transmitem é um profundo desejo de convocação. Temos um planeta adoecido, machucado de diversas maneiras, e não olhamos para ele. Ou melhor: não olhamos para nós. Porque o mais absurdo de tudo isso é que falamos "o planeta" em terceira pessoa, e não na primeira pessoa do plural. Vivemos convencidos de que o mundo não pode parar, que o Brasil não pode parar, até que ploft: tudo para. Compulsoriamente. E quando dizemos o mundo, ou o Brasil, nos referimos a nós mesmos. Somos nós que paramos. E paramos para não colidir. Ou talvez tenhamos colidido e, somente por isso, parado.
A questão é que falhamos naquela construção coletiva chamada humanidade. E não apenas nela. Falhamos na construção coletiva chamada natureza, chamada planeta. Também nos referimos à natureza, ao meio ambiente, como se fosse outra coisa, como se não tivéssemos a ver com isso e como se não fôssemos parte desse mesmo sistema. E por mais que tenhamos acesso a informação, por mais que tenhamos visto os gráficos animados de Al Gore, os vídeos da sueca Greta Thunberg ou as entrevistas de Aílton Krenak, fechamos os olhos para o pedido de socorro do planeta, que somos todos nós, convencidos de que a atividade econômica é o coração de tudo - e, por isso, não pode parar. Isso me faz lembrar aquela metáfora do trânsito. A pessoa, atrasada para um compromisso, com o carro parado no engarrafamento, envia uma mensagem explicando: "estou no trânsito". Krenak por certo responderia a ela: "você não está no trânsito, você é o trânsito". Se não entendermos as coisas dessa forma, estaremos lascados.
A pandemia de coronavírus é algo que pertence ao mundo. Não foi um ser alienígena que desembarcou de sua espaçonave na Terra e trouxe o SARS-Cov-2 no bagageiro. Se eu fosse um pouco mais espiritualista ou tivesse uma concepção um pouco mais holística dessas coisas, diria que somos vítimas, hoje, de uma espécie de reação alérgica do planeta, um choque anafilático, um colapso inevitável após décadas ou séculos de excessos. Com um pouco mais de inspiração, seria possível conceber uma trama ficcional, ou uma teoria da conspiração, segunda a qual foi tudo pensado, tudo planejado estrategicamente pelo meio ambiente, pelo organismo chamado planeta, para se livrar desses que são seus maiores predadores, seus maiores vilões: a humanidade. Que outro motivo haveria para que o mesmo vírus não seja letal para nenhuma outra espécie animal?
Ora, setores da sociedade continuam oferecendo soluções de ontem para um desafio de hoje. E se negam a enxergar a humanidade. Krenak nos conta que, numa reunião após o rompimento da barragem em Mariana (MG), sugeriu o que para ele parecia ser a melhor alternativa para salvar o Rio Doce: interromper toda produção industrial ou de exploração ao longo do rio, em ambas as margens, por cem quilômetros a vazante do local do rompimento, para oferecer as condições vitais necessárias para que o rio pudesse se recompor. Era quase como colocar o rio na UTI. Aos 60 anos, ouviu a resposta óbvia: "isso é impossível". Depois dizem que são os indígenas os selvagens...
E depois da pandemia? Vamos sair delas - se sairmos - melhores ou piores do que antes? O mundo que emergiu do 11 de setembro de 2001 foi um mundo paranoico, terrivelmente intolerante com diferentes culturas e religiões, que levou a experiência xenófoba a um grau altíssimo, meio século após a Declaração Universal dos Direitos Humanos. E agora, como vai ser? Vivemos numa sociedade em que as respostas continuam privilegiando o desenvolvimento, as reservas, a indústria. O mundo não pode parar. O rio? A gente vê como fica. Se não der para salvá-lo, paciência.
A crise vai colaborar para a redução das desigualdades ou vai reforçá-la? É equivocada a ideia de que a Covid-19 é democrática, que ela incide da mesma forma em todas as classes e grupos. Quem pode ficar em casa por mais tempo? Quem pode ficar numa casa com espaço, garantindo dois metros de distância entre as pessoas, cada um num quarto? Quem pode fazer homeworking ou homeschooling, comprar máscara, dar folga para a empregada preservando o salário dela? Não é essa a realidade de noventa e tantos por cento da população. Não é essa a realidade das periferias, do trabalho precário, do subemprego. Não é essa a realidade das margens. E quem vai morrer mais? As estatísticas mostrarão.
Empresários querem retomar a produção a todo vapor. Um mês de confinamento foi demais para eles. Foi, ninguém nega. Sem consumo não há produção. Nem superávit primário. O governo foi mais ágil em permitir a redução de salários dos trabalhadores do que em fazer aprovar a taxação das grandes fortunas, uma medida prevista na Constituição Federal há trinta e dois anos e jamais regulamentada. Hoje, fala-se numa nova tentativa de aprovar esse imposto, mas somente em caráter emergencial, por apenas um ou dois anos, limitada a 0,5% ou 1% da fortuna acumulada pelos multimilionários brasileiros - uma estreita fatia da população que sabe fazer a fortuna render e, em geral, não paga um real de imposto de renda devido à isenção dos lucros.
O lado mais frágil vai ser obrigado a tomar ônibus lotado para ir trabalhar sem a devida proteção. Ou os patrões vão garantir equipamentos, ao menos máscaras e luvas, tanto para o ambiente de trabalho quanto para o trajeto para casa? E quem vai fiscalizar em cada grotão, em cada vilarejo? E todos vão saber chegar em casa e proteger os filhos, os pais, os avós?
O número oficial de infectados pela Covid-19 passa de 2,5 milhões de pessoas no mundo. Há uma subnotificação gigantesca que nos permite pensar num volume quatro ou cinco vezes maior. O que vemos, no entanto, é que não são apenas os infectados que estão doentes. Temos um país adoecido, uma civilização adoecida, um sistema que caminha a passos largos numa direção terrivelmente equivocada. Um mundo adoecido. Que não pode parar.
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