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Camilo Vannuchi

Anivaldo Padilha recebe Prêmio de Memória e Verdade

Anivaldo Padilha é o entrevistado do programa Provocações, com Antônio Abujamra, em fevereiro de 2013 - Reprodução/YouTube
Anivaldo Padilha é o entrevistado do programa Provocações, com Antônio Abujamra, em fevereiro de 2013 Imagem: Reprodução/YouTube

Colunista do UOL

04/12/2020 01h46

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Ele tinha 30 anos de idade quando foi dedurado por um pastor e um bispo de sua igreja. Líder da juventude metodista e do movimento ecumênico da juventude na América Latina, Anivaldo também militava na Ação Popular, uma organização de oposição à ditadura que havia surgido anos antes por iniciativa de integrantes da Juventude Universitária Católica (JUC) e da Juventude Estudantil Católica (JEC) e que, em 1970, estava na clandestinidade. Naquele ano, fazer parte da Ação Popular era motivo suficiente para que Anivaldo fosse conduzido à Operação Bandeirante, um centro extraoficial de repressão política instalado na Rua Tutóia, em São Paulo, que em setembro seria oficializado como DOI-Codi. Na mesma noite, subiu pela primeira vez à sala de interrogatório.

As torturas se estenderam por 22 dias. Mirrado, Anivaldo levou socos, pontapés e choques elétricos, sobretudo na cadeira do dragão, um trono revestido com chapas de metal onde o preso era colocado nu, por vezes molhado, para potencializar os efeitos da corrente elétrica. "Na prisão eu conheci o lado pior do ser humano", contou. "É onde o ser humano está livre para praticar o mal. Não tem nenhum limite, nada que o impeça de praticar o mal. Ao mesmo tempo, lá eu conheci o lado mais sublime do ser humano: a solidariedade".

Quando saiu da prisão, meses depois, ainda em 1970, Anivaldo pesava 52 quilos e estava muito fragilizado. Uma nova prisão, com novas sessões de tortura, poderia ser fatal. Partiu para o Uruguai, utilizando-se de uma rede de apoiadores que o movimento ecumênico da juventude havia ajudado a construir no sul do país, deixando em São Paulo a esposa grávida do primeiro filho. Do Uruguai seguiu para a Argentina, o Chile, os Estados Unidos e, finalmente, a Suíça. O filho, o deputado federal e ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, ele só foi conhecer oito anos depois, já de volta, em 1979.

Durante todo esse tempo, manteve contato com o primogênito somente por carta - o que incluía desenhos e fotografias - e, mais tarde, por meio de fitas K7, levadas na bagagem de algum amigo que viajava para os Estados Unidos. "Eu aprendi o que era democracia e o que era ditadura ouvindo minha mãe, que também esteve na clandestinidade, contar o que havia acontecido com eles, principalmente com meu pai", conta o parlamentar. "E aprendi com ele a dimensão da diversidade e o valor da tolerância. Meu pai trabalhou no Conselho Mundial de Igrejas e viajou o planeta. Quando eu estava entrando na adolescência, via meu pai ora com uma roupa africana, ora com uma bata típica do Caribe. Ele trouxe para casa essa mensagem de ecumenismo cultural, de respeito à orientação sexual, de valorização do diferente".

Anivaldo Padilha nasceu em 1940 em São Pedro da União, uma cidade pequena perto de Guaxupé, no sul de Minas Gerais. Seus pais eram herdeiros das duas famílias mais poderosas e abastadas do município, ambas produtoras de café, que sucumbiram na crise de 1929. Malgrado as tentativas de dar a volta por cima nos anos 1930, seus pais acabaram vendendo todas as terras e migraram para São Paulo em 1945, premidos pela necessidade de arrumar emprego. Anivaldo tinha 5 anos. A única irmã tinha 10. Outros oito irmãos haviam morrido antes de completar 2 anos.

Numa entrevista concedida a Antônio Abujamra no extinto Provocações, em 2013, Anivaldo, que além de ser um líder da igreja metodista é também cientista social, revelou que, se tivesse algum instrumento cortante ou pontiagudo à mão nas três semanas em que foi torturado, possivelmente teria se suicidado. Como não havia, não houver alternativa a não ser resistir. "Vencer os torturadores", como gosta de dizer. Anivaldo contou também que, ao longo de seis anos, teve pesadelos frequentes. Na trama macabra que lhe roubava o sono, Anivaldo voltava a ser preso e torturado. Outras vezes, prendiam sua mulher e seu filho, enquanto ele, exilado em São Francisco, nada podia fazer. Só conseguiu se livrar daqueles fantasmas quando resolveu, segundo ele, perdoar os torturadores. "Perdoá-los foi um processo terapêutico", afirmou. "É importante entender que, quando eu falo de perdão, estou falando do nível subjetivo. Para mim, foi terapêutico. Mas eles têm que ser punidos, porque eles cometeram um crime não somente contra mim, mas contra a sociedade brasileira".

No próximo dia 11, Anivaldo Padilha vai receber o Prêmio de Direito à Memória e à Verdade Alceri Maria Gomes da Silva, concedido pela Prefeitura de São Paulo desde 2016 a personalidades que se destacam na tarefa de denunciar e combater as violações de direitos humanos praticadas na ditadura militar e em defesa da democracia. A honraria é entregue anualmente na Semana dos Direitos Humanos - 10 de dezembro é o aniversário da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ocorrida em 1948, na ONU - para uma pessoa escolhida por um júri formado por cinco especialistas, aos quais compete contemplar as indicações encaminhadas pela sociedade.

"Você merece muito esse prêmio", comemorou o frade dominicano e escritor Frei Betto. "Pela sua luta em defesa dos oprimidos e dos excluídos, pelo seu empenho no diálogo ecumênico e inter-religioso, pela sua posição sempre em defesa da democracia, da liberdade e da justiça, na linha evangélica, exigida por Jesus, de opção pelos pobres e construção de um mundo de partilha dos bens da terra e dos frutos do trabalho humano. Agradeço a Deus por ser teu companheiro, irmão e amigo".

"Sempre me emociono quando o ouço contar as histórias que ele viveu e também a alegria de ter retornado e continuado", destacou a jornalista Magali Cunha, colega de Anivaldo na igreja metodista e colaboradora do Conselho Mundial de Igrejas. "Ele sempre mostrou um compromisso muito grande a partir da sua fé. A fé cristã com a qual ele foi formado foi um elemento decisivo para as opções que ele fez, para os compromissos que ele assumiu em toda a sua vida. A ponto de colocar sua vida em risco, mas sempre em nome do compromisso de fé de afirmar o valor dos direitos humanos, da justiça e da paz".

"É uma alegria saber que o Anivaldo Padilha vai receber este prêmio", celebrou Rogério Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog e ex-secretário nacional e municipal de Direitos Humanos. "Anivaldo foi um resistente, lutou contra a ditadura, foi preso, foi exilado, e hoje é uma pessoa que dedica a sua vida à luta por memória, verdade e justiça. Que esse reconhecimento leve as pessoas a refletir sobre esse período que nós vivemos no passado e que, infelizmente, ainda estamos vivendo no Brasil, porque não trabalhamos de forma adequada a nossa memória e as nossas reparações".

Além do troféu entregue a Anivaldo Padilha, hoje com 80 anos de idade, em cerimônia restrita em razão da pandemia, serão conferidas duas menções honrosas: a psicanalista e também ex-presa política Dodora Arantes e à organização não governamental Central Única das Favelas, a Cufa.