Assis Valente, a morte do Papai Noel e a prisão de Caetano
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Que música te vem à mente quando chega o Natal? "Noite feliz"? "Bate o sino"? "Jingle Bells"? Aquela versão traquinas que ensina a limpar com jornal? "Então é Natal" na voz da Simone? Ou "Happy Xmas", a original, com John e Yoko?
Na live que transmitiu no último sábado (19), Caetano Veloso cantou aquela que sempre foi, para ele, a canção natalina por excelência:
Anoiteceu,
o sino gemeu,
a gente ficou
feliz a rezar.
Papai Noel,
vê se você tem
a felicidade
pra você me dar.
"Boas festas" é a canção de Natal que mais me toca. Foi composta por Assis Valente, o mesmo de "E o mundo não se acabou", imortalizada por Carmen Miranda, e "Brasil pandeiro", explosão de cores e sentidos com os Novos Baianos. "Essa é a canção de Natal que era a canção de Natal quando eu era criança", comentou Caetano.
O cantor aproveitou a canção para lembrar a infância em Santo Amaro: os grandes presépios montados nas salas das casas, muitas vezes cercados com areia da praia e grandes folhas de pitangueira. E destacou a denúncia social que perpassa a letra de Valente.
Eu pensei que todo mundo
fosse filho de Papai Noel.
Bem assim, felicidade
eu pensei que fosse uma
brincadeira de papel.
Já faz tempo que eu pedi,
mas o meu Papai Noel não vem.
Com certeza já morreu,
ou então, felicidade
é brinquedo que não tem.
Papai Noel foi morto por Assis Valente no lado B de um compacto simples de Carlos Galhardo lançado em dezembro de 1933. O Bom Velhinho, se um dia existiu, logo sucumbiu ao racismo estrutural e ao preconceito de classe. Não, não é todo mundo que é filho de Papai Noel. Não, ele não atende a todos os pedidos, de todas as crianças, de forma equânime. Não vá se iludir.
Assis Valente era baiano do Recôncavo. Mulato, fruto de uma relação extra conjugal de um rico comerciante de Salvador com uma jovem pobre do interior, foi dado pela mãe para ser criado por um casal de Santo Amaro da Purificação, a cidade de Caetano. Nascido em 1911, assumiu antes dos 8 anos uma rotina quase extenuante de trabalhos domésticos, de segunda a sábado, primeiro em Santo Amaro e, em seguida, em Alagoinhas, já "adotado" por outra família. Incorporou-se a um circo aos 10 anos e radicou-se em Salvador pouco depois. Adolescente, dividia-se entre um emprego como auxiliar num hospital de Salvador e as aulas de desenho e escultura no Liceu de Artes e Ofícios. Assis tinha 16 anos quando migrou para o Rio de Janeiro e se empregou como protético, responsável por moldar dentaduras e próteses dentárias.
Os primeiros sambas datam da década de 1930. Aos vinte e poucos anos, o baiano inaugurou uma produção prolífica, que chegou a ser comparada à de Noel Rosa, e teve 24 sambas gravados por Carmen Miranda, por quem nutriu uma espécie de paixão platônica. Dono de uma sexualidade indefinida, segundo biógrafos, talvez forçado à reclusão do armário, o sambista se casou aos 28 anos e se separou no ano seguinte, o tempo exato para o nascimento de Nara, a única filha. O fracasso no casamento motivou a primeira de três tentativas de suicídio. Em 1941, pulou do Corcovado e sobreviveu milagrosamente por ter a queda amortecida pela copa de uma árvore. Anos depois, faria uma segunda tentativa cortando os pulsos. Na terceira, sentou-se num banco de praça e ingeriu formicida com guaraná. Morreu ali mesmo, em março de 1958.
Dez anos depois de sua morte, Assis Valente e a música "Boas Festas", quem diria, contribuíram para que o jovem Caetano Veloso fosse preso e, meses depois, banido para o degredo em Londres. Era 1968, o ano que não terminaria. Desde outubro, Caetano apresentava com Gilberto Gil e os Mutantes um programa na TV Tupi intitulado Divino, Maravilhoso. O nome do programa reproduzia o título de uma canção composta por Caetano e gravada por Gal Costa, que pontuara entre as cinco primeiras colocadas no Festival da Record daquele ano. A declaração de guerra à ditadura vinha na forma de refrão: "É preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a morte".
Divino, Maravilhoso, o programa de TV, era transmitido ao vivo, toda segunda-feira. Muita coisa era improvisada. Quase tudo numa estética caótica, libertária, psicodélica. Eis que no último programa do ano, no dia 23 de dezembro, Caetano resolve se aproximar da câmera e aparecer em close, ao vivo, com um revólver apontado para a própria cabeça enquanto cantava "Boas festas". "Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel..." Estava tudo ali: um personagem suicida, atormentado, como Assis Valente, cantando uma canção natalina engajada e melancólica. Uma arma de fogo como objeto totêmico e metonímico sob um regime totalitário e repressivo. Foi a gota d'água. Caetano e Gil, que já eram vigiados pela polícia política desde outubro, quando estrearam uma audaciosa temporada de shows na boate Sucata - em que um cartaz concebido por Hélio Oiticica exibia o desenho de um homem morto e a frase "seja marginal, seja herói" - foram presos no dia 27 de dezembro, em São Paulo, quatro dias após o derradeiro programa na TV e duas semanas após o Ato Institucional número 5.
Seguiram-se dois meses de cadeia no Rio de Janeiro, com interrogatórios que Caetano considerou surreais. Em janeiro, Gil e Caetano, de cabelos cortados, foram levados para Salvador, agora em prisão domiciliar, e em junho foram embarcados num avião rumo a Londres. Anoiteceu.
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