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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Uma carta para Tomás Covas

Prefeito Bruno Covas recebe a visita do filho Tomás durante internação no hospital Sírio Libanês, em São Paulo, durante gravação para o programa Fantástico de 3 de novembro de 2019 - Reprodução TV Globo
Prefeito Bruno Covas recebe a visita do filho Tomás durante internação no hospital Sírio Libanês, em São Paulo, durante gravação para o programa Fantástico de 3 de novembro de 2019 Imagem: Reprodução TV Globo

Colunista do UOL

20/05/2021 13h33

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Prezado Tomás:

Tenho lido diversas reportagens sobre você e pensado um bocado no impacto dos acontecimentos recentes em sua vida pessoal. Não é preciso diploma em psicologia nem doutorado em empatia para intuir a barra desses últimos dias - e para saber que essa barra vai persistir por um bom tempo. Para além da perda e do luto, há uma série de outros processos, alguns prosaicos, outros profundamente transformadores, que a morte precoce de seu pai deverá deflagrar. A repercussão da triste notícia, no último domingo, detonou algumas delas.

Leio, por exemplo, que você esteve muito presente na campanha eleitoral do ano passado e, principalmente, nesses longos dias de internação. William Cardoso, do Agora, chamou você de "fiel escudeiro". Rodrigo Bertolotto e Felipe Pereira, do UOL, mencionaram o último jogo do Santos a que assistiram juntos, pela TV, no início de maio: a vitória por 5 x 0 sobre o The Strongest, da Bolívia, pela Taça Libertadores. Pedro Venceslau, do Estadão, contou que você, nas últimas semanas, passou a maior parte do tempo no Sírio Libanês. Dali, segundo o jornalista, você assistia a aulas do colégio e fazia a lição de casa - essas atividades que, mesmo quando feitas no hospital, são chamadas "de casa".

Numa dessas muitas reportagens, encontro uma imagem sua, feita há pouco mais de um ano, e me detenho nela por alguns minutos. Trata-se da reprodução de um frame do Fantástico, exibido em novembro de 2019. Você veste uniforme escolar: uma camiseta amarela com inscrições em azul, muito parecida com a que eu usava na sua idade. A seu lado, um pai sorridente, de cabelos raspados e barba rala, desvia os olhos da câmera em direção a você, orgulhoso. À pressão de administrar São Paulo com menos de 40 anos soma-se a pressão para enfrentar um câncer. O fundo da imagem denuncia o ambiente hospitalar, com os tubos e instrumentos de enfermagem que costumam cercar os leitos de internação.

Volto mais uma vez os olhos para o uniforme, as cores, a folhinha de bordo. Tomás, eu estudei no mesmo colégio que você. O primeiro ano do Ensino Médio que você cursa hoje, cursei vinte e sete anos atrás. Aliás, fui colega de turma da sua mãe naquela época. Karen e eu não éramos próximos, o que nos fez perder o contato após o fim do terceiro ano, em 1996. Fui reencontrá-la muito tempo depois, em dezembro de 2010, na Assembleia Legislativa de São Paulo.

Jornalista, eu editava uma revista chamada Época São Paulo, um suplemento regional da Revista Época que existiu durante cinco anos, e fui à Alesp para entrevistar seu pai. Aos 30 anos, ele tinha sido o deputado estadual mais votado naquele ano. Presidia a comissão de orçamento e era cotado para assumir a presidência da Alesp na nova legislatura. Estive lá para escrever um brevíssimo perfil dele e encontrei a Karen no café. Ela havia se formado em Economia, se não me engano, talvez na mesma turma que seu pai, na PUC. E havia superado pouco tempo antes um problema sério de saúde, acredito que tenha sido também um câncer, não me lembro. Foi uma conversa rápida, tão expressa quanto o café. Lembrei de tudo isso ao ver sua foto de camiseta amarela ao lado do jovem prefeito. E acabei tomando a liberdade de escrever isso aqui.

Sabe, Tomás, eu não tenho experiência com perdas como a sua, de modo que não existe da minha parte nenhuma presunção no sentido de contribuir ou transmitir qualquer alento que preste por aqui. É com solidariedade que escrevo. E porque me senti estranhamente próximo, pensando nesses encontros e desencontros, em como a diáspora que sucede ao Ensino Médio faz com que velhos colegas se distanciem. Aprendi muito no Santa, e ainda aprendo. De vez em quando, escrevo sobre a escola. No ano passado, publiquei com o Alejandro, que talvez seja seu professor, um perfil de um ex-diretor do colégio, antecessor do Fábio, chamado Luiz Eduardo Cerqueira Magalhães, o Eduardão, que foi diretor no tempo em que sua mãe e eu estudamos lá. E, agora, passei o mês de abril novamente mergulhado em velhas histórias do Santa, escrevendo sobre outra personagem do colégio, a professora Lucy, que deu aulas de química por mais de trinta anos e que marcou pelo menos duas gerações de ex-alunos e ex-alunas. De certa forma, foi como se eu me transportasse para as salas, as carteiras, os laboratórios e o pátio enquanto escrevia. Eu tinha 15 anos novamente, e um mundo por descobrir.

Tomás, eu não votei no seu pai. Na política, estou mais à esquerda. No ano passado, escolhi o adversário do seu pai, um cara da mesma geração que ele, praticamente da mesma idade, com um percurso diferente. No dia do segundo turno, você comentou que o considerava despreparado para o cargo. Acredito que o preparo vem por muitos meios e assume diversas formas. É impossível dimensionar ou comparar lideranças políticas com base em anos de estudo ou em cargos exercidos no serviço público. Bolsonaro tem mais experiência no Legislativo do que Bruno Covas. Collor também o tinha. Ao mesmo tempo, é difícil aceitar que Lula não tinha preparo para ser presidente quando foi eleito. Ou Boulos. O gestor público não lida apenas com política de gabinete, relações institucionais ou administração; ele lida com sonhos, com vida e, acima de tudo, com direitos. No Brasil, gerir é, acima de tudo, garantir direitos e democratizá-los. O direito à vida, à saúde, à moradia, à educação, ao emprego, à cultura. O direito de não ter seu barraco invadido por uma turba de policiais armados. O direito de não ser morto com um tiro na nuca por ser pobre e preto numa realidade que oprime, em razão de uma polícia militarizada que acha normal tocar o terror nas periferias. Certas omissões são muito mais graves do que pedaladas. A responsabilidade humana precede a fiscal.

Não quero me estender nisso nem usar esse espaço para falar de neoliberalismo, de políticas higienistas, de função social da propriedade ou de direito à cidade. Quero dizer que nenhuma filiação partidária, até porque não a tenho, me faz distante de você neste momento. Ao contrário, sinto-me próximo e solidário. Penso também no seu bisavô, nos anos em que o PSDB tinha a social-democracia como meta, no apoio dele a Lula no segundo turno de 1989 e no importante papel que ele desempenhou para impedir que o partido embarcasse no governo Collor. Mário Covas talvez tenha sido o único tucano em quem votei, em 1998. Até hoje, seu nome, como o de Montoro, inspira ética e democracia. Lembro da comoção quando ele, também acometido por um câncer, faleceu pouco tempo depois, também no exercício do mandato, num hospital da rede pública, do Estado que governava.

Algumas pessoas escreveram que, sabendo da gravidade do câncer que enfrentava, Bruno Covas não deveria ter concorrido. Discordo, por vários motivos. Primeiro, porque eleição é disputa de projetos e de partidos, muito mais do que de pessoas. O brasileiro, em geral, tem pouca cultura política neste sentido, e por isso goste de apoiar pessoas como Bolsonaro, Luciano Huck ou Sérgio Moro, sem o menor cuidado em saber que partido ou aliança representam ou quais os respectivos programas. Neste sentido, Bruno representava a continuidade, o nome impresso na cédula para conferir mais quatro anos a um projeto. Na boa política, ao menos quando não há golpe, o vice representa o mesmo projeto que o titular, de modo que somente o eleitor incauto pode se sentir traído ou algo do gênero. Discordo, também, porque a ciência se supera todos os dias, e Bruno em nenhum momento pareceu jogar a toalha. Ele queria viver, superar os obstáculos, não havia essa de "vou morrer". Acima de tudo, discordo porque vocação não se doma, não se limita, não se constrange. Aos 40 anos de idade, Bruno governava a maior cidade do Brasil e as pesquisas de intenção de voto indicavam que ele poderia continuar governando. Um número muito grande de paulistanos confiava nele, queria reconduzi-lo ao cargo. Um político vocacionado não negaria esse gesto, não escolheria abdicar da candidatura para se poupar, para cuidar da própria saúde ou para evitar o trauma de deixar o governo na metade, como o avô.

Tomás, quero concluir falando sobre vocação. Também tenho lido por aí que você tem vocação pra coisa. Um secretário municipal disse que você tem "postura de liderança". Para o presidente municipal do PSDB, é natural que você siga o caminho da política e "mantenha o legado do Bruno". Olha, teu pai exerceu uma das profissões mais bonitas e importantes do mundo. Acredite nisso. Tudo é política, Tomás. O preço do feijão, da farinha, do aluguel e do remédio dependem da política, como bem escreveu Bertolt Brecht. O preço do gás, eu diria. A inflação, o desemprego, o número de doses de vacina. De modo que, se for sua vocação e seu desejo, não hesite em abraçar este caminho. Com força, foco e fé, saiba abraçá-lo como sacrifício, por vezes como imolação, e, se possível, pense naquilo que comentei acima, sobre prioridades e direitos. O caminho é árduo e tortuoso, as cobranças são muito mais frequentes que os elogios. Faltará tempo para a família, para os amigos, para ver o Santos jogar. Mas a sensação de dever cumprido, de se saber construindo um futuro melhor, vai compensar cada revés. Agora, se não for sua vocação, esqueça. Não deixe ninguém decidir com o que você deve sonhar.

Um abraço.

Camilo

Esta coluna foi corrigida para retirar a informação, equivocada, de que Bruno Covas foi o prefeito mais jovem de São Paulo. Em 1953, Jânio Quadros assumiu a Prefeitura aos 36 anos. Bruno tinha 37 (e completou 38 no dia seguinte) quando se tornou prefeito, em 2018.