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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Marielle e as 500 mil mortes derrubarão Bolsonaro?

13.mai.2021 - Ato em frente ao Theatro Municipal, no Rio, lembra o assassinato da vereadora Marielle Franco - Herculano Barreto Filho/UOL
13.mai.2021 - Ato em frente ao Theatro Municipal, no Rio, lembra o assassinato da vereadora Marielle Franco Imagem: Herculano Barreto Filho/UOL

Colunista do UOL

17/06/2021 00h27

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O ex-deputado Jean Wyllys, exilado em Portugal após a vitória de Bolsonaro, fazia uma conferência em Coimbra, em fevereiro de 2019, quando afirmou que Marielle Franco derrubaria o presidente. "Será a memória dela e a revelação de que há relações profundas entre quem hoje ocupa a Presidência e o assassinato dessa mulher, que tinha muito para dar à humanidade", sentenciou.

Não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem. Vaticínio, previsão, praga ou palpite, a frase de Jean Wyllys, agora morando em Barcelona e recém-filiado ao PT, voltou a reverberar na memória de muitos brasileiros na tarde da última quarta-feira (16), após o depoimento do ex-governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), na CPI da Covid. Segundo o ex-governador, afastado no ano passado e cassado de forma definitiva em abril, Bolsonaro passou a retaliar seu governo - e o Estado do Rio de Janeiro - após a acusação (leviana, segundo ele), de que teria pressionado a Polícia Civil para ir a fundo na investigação do assassino de Marielle, o que culminou na prisão de Ronnie Lessa e Élcio Vieira de Queiroz, acusados pelo crime. "Depois desse evento, eu não fui recebido mais no Palácio do Planalto", conta Witzel.

Lessa e Queiroz devem ir a júri popular em breve, mas, a rigor, sua condenação não resolve a dúvida mais importante: "Quem mandou matar Marielle?", repetem as redes sociais desde que os autores dos disparos foram identificados.

Sagaz, Witzel fez cena. Usou a CPI como palanque para se defender politicamente e atirar contra o antigo aliado, hoje com a popularidade em queda. O nome de Marielle não foi citado por ele à toa. Ao resgatar o episódio do assassinato, Witzel tenta angariar legitimidade junto à oposição e à sociedade civil e reivindicar a imagem de alguém que fez o que estava a seu alcance para preservar a verdade e fazer justiça. Na essência, um contrassenso completo. "(Ele) quer usar o nome dela de escudo", reclamou Anielle Franco, irmã de Marielle, no Twitter. Anielle ainda lembrou que Witzel foi eleito sete meses após a morte de Marielle e que, na ocasião, estava mancomunado com aliados que se opunham à investigação. Num comício em Petrópolis, subiu ao palanque logo depois que os candidatos a deputado Daniel Silveira e Rodrigo Amorim quebraram uma placa de rua com o nome de Marielle. "Subiu, fez charminho, riu, e achou lindo!", anotou Anielle.

Na CPI, após insinuar o envolvimento do clã Bolsonaro com os assassinos da vereadora e do motorista Anderson Gomes, Witzel disse que aquela prisão deflagrou a perseguição que teria culminado no "golpe" contra ele logo nos primeiros meses da pandemia (o pedido de impeachment, admitido na Assembleia Legislativa do Rio em junho de 2020, atribuía ao então governador a suspeita de superfaturamento na compra de respiradores e atraso na construção de hospitais de campanha).

Passados mais de três anos desde a morte de Marielle, o fantasma da vereadora volta a assombrar o presidente da República. Nunca deixou de assombrá-lo. A sensação de "aí tem" só faz crescer - e o depoimento de Witzel contribui neste sentido. Marielle é, também, caudatária de um sentimento de profunda inquietude e urgência que ganha tônus e amplia horizontes a cada nova notícia de violência contra negras e negros no Brasil. De violência e de violação de direitos (também uma forma de violência). No dia 8, reagimos com indignação à morte da jovem Kathlen Romeu, de 24 anos, grávida de 14 semanas, vítima de uma suposta bala perdida disparada por um policial militar durante operação no Complexo do Lins, na zona norte do Rio de Janeiro. As balas, no Brasil, padecem de um racismo atávico.

Mais recentemente, no dia 13, um casal de jovens brancos teve o desplante de acusar um rapaz negro, no Leblon, de ter furtado sua bicicleta elétrica. Na realidade, a bicicleta pertencia ao próprio rapaz acusado. Foi um episódio não somente de racismo e calúnia, mas de arrogância e patrimonialismo, tão arraigados na elite branca no Brasil: "nós somos brancos e estamos no Leblon, portanto temos o direito de acusar quem quisermos e incriminar quem julgarmos apropriado", o episódio parece revelar.

No próximo domingo, é provável que a contagem de vítimas da Covid no país atinja a marca de 500 mil pessoas. Cerca de 2.000 pessoas são mortas pela polícia apenas no Rio de Janeiro a cada ano - e 86% delas são pretas. A crise sanitária e humanitária que vivemos, hoje, no Brasil, passa pelas 500 mil vítimas da Covid e também pelos 2 mil óbitos causados pela Polícia (somente no Rio) em um ano. Passa pelo descaso e pelo racismo. Passa pelo superfaturamento de respiradores praticado por Wizel e pelo sorriso maroto de quem quebra uma placa com o nome de Marielle, satisfeito por mostrar que é rude, reacionário - e extremamente imbecil.

A jovem vereadora - preta, periférica, bissexual, corajosa e radiante - tem derrubado Bolsonaro aos poucos, mesmo depois de ter sido assassinada. A CPI da Covid pode concluir o trabalho que ela começou. É preciso estar atento e forte.

A propósito, quem mandou matar Marielle?