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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Clarice Herzog, 80 anos: incansável

Clarice Herzog, publicitária, viúva do jornalista Vladimir Herzog, assassinado no DOI-Codi em 1975, em gravação de 2019 para o Instituto Vladimir Herzog e o Museu da Pessoa - Reprodução
Clarice Herzog, publicitária, viúva do jornalista Vladimir Herzog, assassinado no DOI-Codi em 1975, em gravação de 2019 para o Instituto Vladimir Herzog e o Museu da Pessoa Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

01/07/2021 18h56

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Escrevo esta coluna numa sala do Instituto Vladimir Herzog, em São Paulo, onde estou desenvolvendo um projeto que será lançado no segundo semestre. Falarei dele mais para frente, em momento oportuno. Hoje, o dia é de celebrar Clarice, festejar Clarice, comemorar Clarice.

Criar e presidir este Instituto, uma organização da sociedade civil voltada à defesa da democracia, dos Direitos Humanos e da liberdade de expressão fundada em 2009, foi uma das muitas demonstrações de coragem e ousadia de Clarice Herzog em seus 80 anos.

Até recentemente, o IVH compartilhava o mesmo imóvel com o instituto de pesquisas comandado por Clarice, na Avenida Faria Lima. Hoje, o Instituto fica num sobrado no Sumaré - a poucas quadras da casa onde Dom Paulo Evaristo Arns foi morar depois de vender o palácio episcopal para comprar centenas de terrenos na periferia de São Paulo (a fim de cultivar comunidades eclesiais de base onde a ação social da Igreja se fazia mais necessária).

Aqui, as paredes falam. "Todos os homens nascem livres e iguais em oportunidade e direitos", diz um cartaz atrás da mesa do diretor executivo. Na recepção, reproduções de frames de "Marimbás", um documentário curta metragem dirigido por Vlado. Em outra parede, flagrantes do jornalista no exercício da profissão. Numa das fotos, Herzog assiste a um jogo da Copa de 1962 com colegas do Estadão. Em outra, aparece muito elegante, com as mãos no bolso, em frente ao Palácio do Planalto, cobrindo a inauguração de Brasília. Há ainda imagens em que Herzog interage com os também jornalistas Fernando Pacheco Jordão, Audálio Dantas, Júlio Lerner e outros.

Vladimir Herzog tinha 38 anos - mais novo do que sou hoje - e chefiava o departamento de jornalismo da TV Cultura quando foi intimado a comparecer no DOI-Codi, para esclarecimentos, em outubro de 1975. Chegou cedo, às 9h do dia 25 de outubro de 1975, um sábado. Por volta das 16h, um jovem santista de 22 anos chamado Silvaldo Leung Vieira, aluno em um curso de fotografia técnica da Polícia Civil, foi convocado para o que lhe parecia uma aula prática: registrar um "encontro de cadáver" no Departamento de Operações Internas do II Exército. Um motorista o levou até a Rua Tutoia. Numa cela, Silvaldo encontrou a cena montada: um corpo pendia do vitrô, pendurado pelo pescoço. As pernas, dobradas, se arrastavam no chão.

Segundo a versão oficial, Herzog havia se suicidado, apenas sete horas depois de dar entrada, espontaneamente, no DOI-Codi, o centro de tortura mais truculento de São Paulo, responsável por pelo menos 51 execuções entre 1970 e 1975, segundo a Comissão Nacional da Verdade, e que foi chefiado pelo coronel Brilhante Ustra até 1974.

Clarice e Vlado tinham dois filhos, Ivo e André. O mais velho tinha 9 anos, a idade do meu filho, quando viu o nome do pai estampado nos jornais, num dos episódios mais significativos para o início da abertura democrática, que ainda levaria mais de uma década para se concretizar. A morte de Herzog produziu uma crise inédita no sistema de informação e repressão, provocou uma troca de comando no II Exército, colocou milhares de pessoas na Catedral de São Paulo num ato ecumênico que juntou Dom Paulo Evaristo, o rabino Henry Sobel e o pastor Jaime Wright, e representou o avanço de algumas casas na denúncia das violações de direitos praticadas pela gangue fardada. Em cada uma dessas ações, havia uma mulher de fibra e coragem disposta a denunciar, a cobrar, a defender a memória de Vlado.

A batalha de Clarice nunca cessou. Em 1978, ela conseguiu na Justiça que a União fosse responsabilizada pela morte do marido, uma façanha em tempos sombrios. Em 2013, foi expedido um novo atestado de óbito, declarando que Herzog morreu em decorrência de "lesões e maus tratos" nas dependências do II Exército (DOI-Codi), e não por "asfixia mecânica por enforcamento" como mencionado no atestado de óbito original, uma correção que representou a vitória da verdade sobre a mentira, trinta e oito anos após seu assassinato. Em julho de 2018, mais de quarenta anos depois da falsificação histórica capturada pela câmera operada pelo jovem Silvaldo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro a apurar, julgar e punir os responsáveis pela morte do jornalista.

Ainda hoje, no Brasil, fala-se pouco das mães, irmãs, esposas e companheiras que construíram a luta por memória, verdade e justiça em relação à violência praticada pela ditadura. A imagem icônica de Herzog enforcado, uma das mais tristes e cruéis representações do escárnio, conta parte dessa história. A outra parte é contada pelo compromisso diuturno daqueles e daquelas - sobretudo daquelas - que assumiram para si a missão de exigir reparação histórica, simbólica e judicial. Herzog não teria a mesma dimensão, décadas após sua morte, se não houvesse Clarice. A garra de Eunice Paiva foi fundamental para a construção histórica de Rubens Paiva. Inesquecível a fala sofrida e aguerrida de Ana Dias, viúva de Santo Dias, a apontar o dedo para o sistema opressivo e canalha que derrubou seu marido na porta de uma fábrica em Santo Amaro. Clara Charff e Marighella, Ilda Martins da Silva e Virgílio. E as mães, é claro. Elzita Santa Cruz e Fernando, Zuzu Angel e Stuart, Egle Vannucchi Leme e Alexandre. Celebrar Clarice é fazer reverberar sua força, é reconhecer que, pouco a pouco - muito mais vagarosamente do que deveria, é bom que se diga -, essas mulheres estão conseguindo vencer os assassinos de seus familiares. Não passarão.

É disso que trata o ótimo livro "Heroínas dessa história: mulheres em busca de justiça por familiares mortos pela ditadura", organizado por Carla Borges e Tatiana Merlino (Autêntica e Instituto Vladimir Herzog, 2019). Ali, as histórias de quinze mulheres são contadas por quinze mulheres. Um dos textos foi feito por Miriam Leitão. "Clarice jamais se calou", escreveu a jornalista. "A primeira vez que gritou 'Mararam o Vlado' foi quando viu chegarem a sua casa os diretores da TV Cultura, chefiados pelo diretor geral. Eles apareceram no fim do dia 25 de outubro de 1975, e nada precisaram dizer; ela os viu e concluiu. Depois daquele dia haveria muitas lutas".

Miriam Leitão, jornalista presa e torturada em 1972, aos 19 anos, gravou um depoimento para um documentário de 25 minutos que o Instituto Vladimir Herzog acaba de divulgar em homenagem aos 80 anos de Clarice (a estreia estava prevista para as 19h30 do dia 1º de julho, aqui). Nele, qualifica a amiga como um símbolo da luta por democracia e da busca pela verdade. No vídeo, há outros depoimentos marcantes, como os de Fernando Henrique Cardoso e Dilma Rousseff, dos jornalistas Juca Kfouri e Eugênio Bucci, do escritor Ignácio de Loyola Brandão e do músico e compositor João Bosco.

É dele e do poeta Aldir Blanc, vítima fatal de Covid-19 no ano passado, a música "O bêbado e a equilibrista", um dos hinos do movimento pró Anistia, gravada por Elis Regina em 1979. "Choram Marias e Clarices no solo do Brasil", ela cantava. Refeita do choro, Clarice sempre soube inspirar a todos com sua determinação e também com seu sorriso, uma risada jovial que só os que têm a consciência tranquila são capazes de dar. Que neste 1º de julho ela esteja sorrindo. Atenta e forte.