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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Perder com a alma leve

Presidente Jair Bolsonaro e a seleção brasileira durante premiação de campeão da Copa América de 2019, no Maracanã, Rio de Janeiro - 07.jul.2019 - Ricardo Botelho/Brazil Photo Press/Folhapress
Presidente Jair Bolsonaro e a seleção brasileira durante premiação de campeão da Copa América de 2019, no Maracanã, Rio de Janeiro Imagem: 07.jul.2019 - Ricardo Botelho/Brazil Photo Press/Folhapress

Colunista do UOL

11/07/2021 11h03

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Não me sinto um derrotado. Nunca me senti. Sei que tenho escolhido jogar no time dos que resistem, no time dos vulneráveis, dos idealistas, dos que buscam e têm esperança. Isso tem um preço. Aliás, tem vários preços. Um deles é perder com relativa frequência. Perder quando somos minoria. Perder quando os golpes do outro lado chegam duros, implacáveis e muitas vezes de forma desonesta. Mesmo nessas derrotas, ou principalmente nelas, não me sinto derrotado. Prefiro mil vezes perder no time da coragem e da justiça a vencer no time da mentira, do autoritarismo, da hipocrisia e do atraso.

Alguns anos atrás, torci para que o então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, fosse reeleito. Minha cidade estava melhor naquela época do que antes e melhor do que ficou depois. É possível que haja exceções. Mas um passeio por São Paulo num domingo como hoje, tanto no centro quanto nas periferias, será o bastante para a leitora e o leitor concordarem comigo. Pois bem. Haddad perdeu aquela eleição. Este fato não impediu que milhares de apoiadores fossem à Avenida Paulista para aplaudir o prefeito em sua saída. Um bota-fora de amor e afeto, com Haddad carregado nos braços, como o artilheiro que ele havia sido naqueles quatro anos. Um jornalista, não me lembro qual, zombou do bota-fora. Nunca vi comemorarem derrota, ele escreveu, com ironia. Acredito que ele não entendeu. Ou não possui a dimensão do agradecimento, do caminhar junto, do vamos em frente quando se sabe que o combate foi bom e que o trabalho foi feito.

Eu me sentia triste pela derrota, mas feliz por perder ao lado daquela gente, daquele projeto. Tive sensação parecida dois anos depois, embora naquele momento tenha sido tudo muito mais grave, um alçapão que se abria sob nossos pés, um anúncio de tempos sombrios para todo o Brasil. Impossível celebrar a derrota, nisso o jocoso jornalista tinha razão. Foi foda. Mas estávamos ali, reunindo os miúdos, os trapos, nossos pedaços, para levantar a cabeça e começar um trabalho muito persistente de resistência e reconstrução. Estamos na fase da resistência. A fase da reconstrução terá de começar em breve.

Bom, hoje sinto novamente a convicção de que, às vezes, é melhor perder, ou, pelo menos, estar no time dos derrotados. Não gostaria de estar entre os que venceram em 1964. Não gostaria de estar entre os que comemoraram a eleição deste presidente da República. Não gostaria de me sentir em casa entre os que (ainda) o apoiam. Não gostaria de lidar com a culpa de ter contribuído para cavar o poço sem fundo em que nos encontramos. "Chupa!", gritaram alguns. "Chora mais", berraram outros. "O choro é livre", explicaram, muitas vezes num comentário em rede social, acompanhado por um kkk e uma bandeirinha do Brasil. Eu só conseguia pensar numa frase, um tanto atabalhoada, dita pela ex-presidente impichada: ninguém vai ganhar nem perder, vai todo mundo perder.

Desde 2015, muito do que tenho feito, na vida profissional e na pessoal, é uma espécie de resistência. Perdi muitas vezes. Não vai ter golpe, eu dizia. E teve. Diretas já, apelei. Não rolou. Fora Temer, propus. Mas que nada. Somei-me ao Lula Livre quando me convenci de que havia algo de errado naquele processo, na coleta de provas e na conduta parcial do juiz, incensada pela opinião pública e recepcionada por uma dezena de magistrados. Ele Não, estampei no broche e na foto de perfil. Perdi sempre. Baita pé frio. Mas a verdade é que vencer ao lado dos vencedores, nesses casos, teria sido muito pior. Vitória, para mim, é comida no prato, três refeições por dia, moradia digna, justiça tributária, SUS fortalecido, Brasil fora do mapa da fome, pleno emprego, criminalização do feminicídio, do racismo, da homofobia e da transfobia. É o Brasil fazendo bonito no exterior. É proteção à população em situação de rua, às nações indígenas, ao meio ambiente, ao povo da cultura, ao "pessoal dos Direitos Humanos". É liberdade de cátedra, liberdade de expressão e liberdade de imprensa. Hoje, noto que todo mundo perdeu. E segue perdendo. E percebo, também, que a conta da Lava Jato e do golpe de 2016 tem sido mais alta do que muitos esperavam, sobretudo mais alta do que podiam imaginar aqueles que aplaudiram. "Só aos poucos que o escuro é claro", escreveu certa feita João, meu autor preferido.

No futebol, é parecido. Não era para haver Copa América. Não era para a Copa América ter vindo para o Brasil. Não era para CBF, Neymar e outros que tais adotarem posições tão ineptas. Sobretudo, foi um alívio não precisar ver, outra vez, uma foto do capitão cloroquina erguendo a taça com seu sorriso boçal, gatilho de asco e dor, como na final de dois anos atrás. De certa forma, sinto-me profundamente brasileiro e patriota ao ver a seleção deixar de vencer a copa da vergonha. Vencer é bom. Mas só é bom e digno de orgulho quando vencemos ao lado dos melhores sentimentos, das melhores causas.

Por enquanto, seguimos na resistência. Virá o tempo da reconstrução.