Topo

Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Além de desinformar, fala de Bolsonaro reforça estigma da Aids

Colunista do UOL

26/10/2021 03h08

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Laerte está certa. Já passou da hora de a Deusa Têmis voltar de férias e providenciar algemas para o presidente falastrão. Atribuir às vacinas contra covid-19 o risco de contrair HIV, o vírus da Aids, talvez tenha sido a gota d'água. "Chega", decretou a personagem grega, de venda nos olhos e balança nas mãos, em tira recente da cartunista. Moto-contínuo, YouTube e Facebook tiraram do ar o vídeo da live em que Jair Bolsonaro cometera a referida estultícia.

Tudo muito bem, tudo muito bom. É preciso coibir a desinformação. Ruas e redes precisam ter olhos e ouvidos atentos ao festival de absurdos que assola o país. Para lembrar e repetir, quantas vezes for preciso, que vacinas não causam Aids. Tampouco câncer, aliás, nem impotência, piolho ou unha encravada. Infelizmente, o pau de que é feita a cara de Bolsonaro, este Pinocchio mesquinho, desprovido de consciência e grilo falante, não tem o condão de fazer seu nariz crescer a cada mentira, a cada lorota.

Chama atenção, no entanto, uma segunda camada de cretinice no discurso do fuhrer. O que ele fez, ao dizer o que disse, não foi apenas regurgitar mais uma excrescência com potencial genocida. Além de mentir, Bolsonaro agiu de modo a reforçar, com requintes de quarta-série, um estigma que há quarenta anos tem sido bravamente combatido por cientistas, autoridades, profissionais da Saúde, médicos e assistentes sociais, ativistas e militantes dos Direitos Humanos. Refiro-me ao estigma da pessoa soropositiva e do doente de Aids.

Quando Jair Bolsonaro associa a vacina ao risco de "pegar" Aids, ele faz mais do que demonstrar a extensão de sua canalhice. Ele fere de morte o programa nacional de imunização, necessariamente coletivo, e agride uma legião de cidadãos ao pintar a Aids como a pior das patologias, uma doença maldita, uma espécie de castigo divino, cevada em crendices e preconceitos.

A doença é de fato péssima, mas o estigma é ainda pior. Segundo o mais recente Boletim Epidemiológico HIV/Aids, divulgado pelo Ministério da Saúde em dezembro de 2020, a Aids mata entre 10 mil e 11 mil pessoas por ano no Brasil. A covid-19 matou 600 mil em um ano e meio.

Desde 1980 e até 31 de dezembro de 2019, foram notificados 349.784 óbitos no país tendo a Aids como causa. Note: 350 mil em quarenta anos. A covid-19 matou 600 mil em um ano e meio.

Hoje, o coeficiente de mortalidade da Aids no Brasil está em 4,1 óbitos por 100 mil habitantes ao ano. O coeficiente de mortalidade da covid-19 é sete vezes pior: 28,5 óbitos a cada 100 mil habitantes.

Na primeira década deste século, tive a oportunidade de trabalhar durante um semestre com um colega soropositivo. Foi, até hoje, a única pessoa com quem eu convivi e que me contou ter contraído o HIV. Uma tarde, enquanto tomávamos café, esse colega me falou do seu tratamento e narrou as transformações no prognóstico da Aids ao longo daquela década. Sem hesitar, citou duas ou três outras doenças, mais prevalentes na população e muito menos estigmatizadas do que a primeira, que são mais letais e mais traiçoeiras do que a Aids se descoberta no início e tratada com o coquetel adequado. E com efeitos colaterais mais graves, afetando mais a qualidade de vida do paciente.

Agora vem esse genocida tresloucado extrair desinformação sabe-se lá de que orifício a fim de aumentar mais um bocadinho o total de vítimas da covid-19 e alimentar um estigma que, nos anos em que ainda éramos um país minimamente civilizado, vinha sendo gradualmente superado. Com uma diferença fundamental: diferentemente da Aids, já existe vacina para a covid-19.

Difícil demais viver com esse sujeito à solta. Deusa Têmis, cadê a senhora?