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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

No Brasil de Bolsonaro, também é hora de tomar a Bastilha

Tela Tomada da Bastilha, de Jean-Pierre Houël, 1789 - Reprodução Wikipedia
Tela Tomada da Bastilha, de Jean-Pierre Houël, 1789 Imagem: Reprodução Wikipedia

Colunista do UOL

14/07/2022 04h00

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Esses que aí estão não gostam de lembrar que houve uma revolução francesa. A maioria provavelmente nem sabe muito bem do que se trata. Nenhuma surpresa para quem optou por estacionar na Idade Média e ainda não alcançou o iluminismo, o heliocentrismo, os movimentos de rotação e translação da Terra. Outros preferem fazer cara de paisagem. Para esses, "antigo regime" deve ser alguma dieta famosa, como a dukan ou a low carb. Os sans-culotte, por certo são os que seguiram as regras e conseguiram perder alguns centímetros ao redor da coxa.

Sem a revolução francesa, talvez não houvesse o que chamamos de direitos humanos, essa pedra no sapato dos fascistas e autocratas. Nem a democracia participativa, essa instituição que Bolsonaro e seu vice insistem em ameaçar.

Até alguns anos atrás, quando a educação tinha algum valor (e não aquele fixado em barras de ouro por pastores e burocratas), e a cultura ainda não havia se tornado coisa de vagabundo, jovens costumavam estudar a revolução francesa para o ENEM e o vestibular. Algo meio cringe, eu sei, de uma época em que havia Fies e Prouni, pedreiros e faxineiras matriculavam seus filhos na faculdade e uns poucos idealistas ousavam inaugurar novas universidades e institutos federais.

Mas isso foi antes da consagração do fundamentalismo e do obscurantismo. E antes de George Orwell e Margaret Atwood se tornarem autores de não-ficção.

Naquela época, os professores de História (nem todos eles eram comunistas viciados em mamadeiras de piroca, diga-se) ensinavam que a revolução francesa teve como ponto de partida um levante que aconteceu há mais de duzentos anos, num 14 de julho como este. Naquele dia, em 1789, manifestantes tomaram a Bastilha, uma prisão que simbolizava o que havia de mais autoritário e despótico no absolutismo francês.

Luís XVI, o rei, nem era esse bolsominion todo. Empenhado em ouvir a opinião pública e em garantir, por exemplo, liberdade religiosa aos não católicos, zeloso das relações internacionais e tido como intelectualmente bem-preparado (quanta diferença...), o monarca se considerava ungido por Deus e acima da lei. Era dotado de algum senso estético e tinha boas maneiras à mesa, algo que há muito não se vê nos ambientes palacianos de Brasília. Mas irritava-se com a Assembleia Nacional, não suportava oposição e - adivinha? - ganhou fama de indeciso, fraco, incapaz de governar.

A história muitas vezes se repete, dizem.

A Bastilha, por sua vez, era o destino dos que incomodavam. Todo aquele que se opunha ao rei ou representava ameaça ao monarca podia ser jogado na masmorra. "O Estado sou eu", teria afirmado seu tetravô, o também rei Luís XIV, um século antes. Diante de uma crise sem precedentes, Luís XVI ousou vestir o mesmo figurino.

Impossibilitado, por questões meramente tecnológicas, de "fuzilar a petralhada" ou de sugerir uma "granadinha" para frear a campanha eleitoral de seu principal oponente, Luís XVI dava seus pulos. Mandava prender na Bastilha, o mais famoso presídio político de sua época, quem bem entendesse.

Neste sentido, tomar a Bastilha se mostrou a mais simbólica das revoltas, o início de um contra-ataque providencial e necessário para evitar a barbárie. A França vivia então a maior de suas crises. A inflação galopava, os preços tornaram-se proibitivos, a fome se alastrava pelo país, a pobreza acometia 90% da população. Alguma semelhança? "Se não têm pão, comam brioches", teria sugerido a rainha Maria Antonieta aos insurgentes. "O Brasil vai muito bem", afirmou Bolsonaro em Orlando, na mesma semana em que o número de famintos no Brasil atingia 33 milhões de pessoas.

A tomada da Bastilha funcionou como fagulha no barril de pólvora. Não havia quem aguentasse tamanha opressão e tamanha negligência. O rei nada fazia para aplacar os problemas que se avolumavam. Ao contrário, respondeu à crise financeira aumentando a cobrança de tributos do povo, cada vez mais empobrecido.

As rebeliões se estenderam por dez anos a partir daquele momento, culminando no fim do absolutismo francês, na formação da República e na promulgação, em 1789, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, precursora dos direitos humanos e inspiração para grande parte das cartas magnas editadas no mundo nas décadas seguintes.

Luís XVI, o déspota, seria julgado por traição e condenado à morte na guilhotina.

"Ah, vai rolar, vai rolar / Alegremo-nos, bons tempos virão!", diziam os versos de Ça Ira, uma canção revolucionária francesa de 1790. "Avante, filhos da Pátria, o dia da glória chegou", conclamava a Marselhesa, em 1792.

Em 14 de julho de 2022, é preciso marchar e tomar a Bastilha - uma tomada simbólica, metafórica, que nos torne novamente donos de nossos destinos. Uma guinada popular e emblemática, que anuncie a chegada da primavera e evite o derramamento de mais sangue neste país tão conflagrado.