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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Daniela Mercury, Chico, Anitta, Caetano e a volta da música de protesto

Daniela Mercury detona Bolsonaro no single "O samba não pode esperar" - Divulgação
Daniela Mercury detona Bolsonaro no single "O samba não pode esperar" Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

01/09/2022 04h00

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Coloco o novo single de Daniela Mercury para tocar em looping enquanto faço comida. Autoral, a música "O samba não pode esperar", lançada por ela na semana passada, é um petardo de rebeldia e esperança, um grito de liberdade sem hesitações nem falsas simetrias. Presto atenção ao timbre, ao arranjo, ao batuque e me demoro na letra, saboreando cada verso. "O futuro não pode esperar", ela diz.

Porque o dia a dia do povo
tem sido um calvário, um sufoco
Você, como erva daninha,
mata aos poucos, tira o ar
Ameaça a democracia,
sua tirania quer nos calar
Mas as ruas são da liberdade,
a expressão da vontade que nem pode esperar.
Você é animal traiçoeiro
que anda em matilha e ataca por trás.
Faz piada e gargalha da morte
como um bando de hienas sobre restos mortais.
Quem apoia seu mal é cruel,
desumano, fascista e sem coração.
Quem não sente a dor do seu povo
é uma gente egoísta que não vale um tostão.

Paro para ouvir outra vez, impactado, num misto de "uau" e "caramba". Não resta dúvida sobre o destinatário dessa letra-manifesto. Ou resta?

Admiração renovada por essa artista imensa, a mesma que certa vez, três décadas atrás, viajou de Salvador para São Paulo para se apresentar no vão livre do Masp num show gratuito na hora do almoço. O episódio merece ser lembrado com pompa de efeméride.

Era dia útil. Daniela agitou tanto que não houve quem não parasse para ver. A multidão, incontida, acabou transbordando para o asfalto e chegou a ocupar duas faixas da Avenida Paulista, para desespero dos agentes da CET. Não bastasse, a balbúrdia foi tanta que o prédio do Masp começou a tremer, obrigando a então secretária municipal de Cultura, Marilena Chaui, a intervir para abreviar a apresentação. "O canto dessa cidade é meu", exultava a cantora, ao microfone, com um axé maior que São Paulo.

A partir daquele dia, Daniela Mercury voou sem escalas. Ajudou a revolucionar o Carnaval da Bahia e foi madrinha dos principais blocos e afoxés de Salvador durante a explosão do ritmo mais ouvido e tocado dos anos 1990. Uma década depois, ousou juntar axé e música eletrônica e reinventar a trilha sonora de parte das barracas de praia, inaugurando uma nova geração de beach clubs. Outros dez anos se passaram até que ela, íntegra e dona de si, voltasse às capas de revistas ao assumir seu casamento com a jornalista Malu Verçosa, em 2013. Por que raios Daniela se calaria agora, diante de tamanho descalabro, num momento crítico para história do Brasil?

Foi assim no Ato pela Terra, em Brasília. Foi assim ao cantar "Terra" em protesto contra o Pacote da Destruição, na Câmara dos Deputados. Foi assim ao cantar o Hino Nacional em cerimônia que homenageou Bruno e Dom na Catedral da Sé, em São Paulo. Hoje, Daniela é toda engajamento, é toda missão.

"O samba não pode esperar" parece dialogar com outro single recente, lançado em junho por Chico Buarque. "Que tal um samba?" foi a primeira canção inédita lançada por ele em cinco anos. Chegou às plataformas para ser o carro-chefe da próxima turnê, também intitulada "Que tal um samba?", prevista para começar em janeiro.

Que tal um samba?
Para espantar o tempo feio
Para remediar o estrago
Que tal um trago?
(...)
Juntar os cacos, ir à luta
Manter o rumo e a cadência
Desconjurar a ignorância, que tal?

A que tempo feio o compositor se refere? A qual estrago? Quais são os cacos que é preciso juntar com tanta luta? A quem se pode atribuir tamanha ignorância?

Se Chico Buarque é useiro e vezeiro no cancioneiro político, se ele fez barba, cabelo e bigode na música de protesto há mais de meio século, é alvissareiro observar a nova lufada de canções políticas que vem soprando nos palcos e nos fones por aí. Essa nova onda musical reúne num mesmo cordão, numa mesma marcha pela democracia, veteranos de 80 anos e artistas bem mais jovens, não menos populares do que aqueles.

"Viva a democracia!", grita Milton Nascimento, 79, após o primeiro bis na turnê "A Última Sessão de Música", atualmente em São Paulo, logo depois de lembrar a seu público que "sonhos não envelhecem" e que ele não pode "aceitar sossegado qualquer sacanagem ser coisa normal". "O jeito é convencer quem devasta / A respeitar a floresta", propôs Gilberto Gil, 80, em sua última canção inédita, "Refloresta", lançada no ano passado. "Palhaços líderes brotaram macabros / No império e nos seus vastos quintais", canta Caetano Veloso, 80, na hermética "Anjos Tronchos", um libelo contra a desinformação que assola o planeta por vias digitais, também lançada em 2021. "Um post vil poderá matar / Que é que pode ser salvação?", indaga.

Ainda longe dos 80 anos alcançados pelos que construíram a Era dos Festivais e compuseram as mais conhecidas músicas de protesto — "Cale-se", de Gil e Chico; "Apesar de Você", de Chico; "É proibido proibir", de Caetano, e tanta outras —, os rapazes que integram a banda Francisco, El Hombre não podem ser considerados novatos. Com uma década de estrada, a banda estourou em 2016 com a feminista "Triste, Louca ou Má", indicada ao prêmio de melhor canção em língua portuguesa no Grammy Latino do ano seguinte, e registrou pela primeira vez seu repúdio ao presidente da República na faixa "Bolso Nada", gravada no mesmo álbum, quando o protagonista da letra ainda era um polêmico deputado federal.

Se a um fascista é concedido cargo alto e voz viril
Vai lucrar do desespero, tal loucura já se viu
Bolso dele sempre cheio, nosso copo anda vazio
Mesquinhez e intolerância, bolso nada que pariu.

Passados cinco anos, uma prisão política, uma eleição e uma pandemia, a banda voltou às trincheiras da música de protesto no ano passado, com a sugestiva "Nada conterá a primavera" e, no início de agosto, lançou o single "Arranca a cabeça do rei", que certamente não foi inspirada em Roberto Carlos, nem em Elvis Presley ou no monarca Salman bin Abdulaziz Al Saud, da Arábia Saudita.

As novas músicas de protesto não precisam ser tão explícitas quanto o desabafo de Daniela Mercury ou o manual guerrilheiro de Francisco, El Hombre. Há manifestações mais sutis, à maneira do repertório engajado dos anos 1970, que recorria às entrelinhas para driblar a censura. Pabllo Vittar, por exemplo, que primeiro lançou a moda das toalhas do Lula ao ganhar de presente e agitar uma delas após se apresentar no Lollapalooza, em março, lançou em agosto o single "Volta pra Ficar". Gravado em dueto com Lukinhas e embalado numa capa eletrônica em tons de vermelho, o pagode traz uma letra romântica como tantas outras e não suscitaria nenhuma suspeita de duplo sentido se não estivéssemos em ano eleitoral, no epicentro da campanha.

Volta
Até o fim do ano
Volta
E arruma toda nossa história
Já não sei esperar
Aqui é o seu lugar.

Para esses artistas, vale notar, o protesto se dá menos por meio das letras do que por meio das atitudes, das declarações, do discurso. Anitta, hoje, é o exemplo mais bem acabado disso. Seu engajamento digital, ainda maior após vencer o prêmio de melhor clipe de música latina no Video Music Awards, promovido pela MTV nos Estados Unidos, na última segunda-feira, catapulta a visibilidade de suas declarações a níveis inéditos.

Mesmo que os versos de "Envolver" não encerrem nenhum discurso político explícito ou organizado, há muita política em sua performance, sua origem, no carão, no fato de cantar um estilo musical nascido no gueto, fazer música "de preto", "de favelado", e ter se tornado uma "formadora de opinião" muito mais potente e com maior alcance em todo o mundo do que qualquer intelectual ou homem branco rico de meia idade nascido no Brasil. E isso é imperdoável.

Entre memes e tuítes, um comentário de Anitta contém mais protesto do que horas inteiras de estúdio. E isso não é ruim. Vai passar.