Topo

Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quem vota em Jair Bolsonaro tem bandido de estimação?

Bolsonaro tenta descolar sua imagem de roberto jefferson mas fotos recentes mostram os dois juntos -  Redes Sociais/PTB
Bolsonaro tenta descolar sua imagem de roberto jefferson mas fotos recentes mostram os dois juntos Imagem: Redes Sociais/PTB

Colunista do UOL

27/10/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

— Pelo menos eu não tenho bandido de estimação — disse o rapaz de camiseta amarela, com o número 10 e um nome de jogador estampado nas costas.

— Que bom — assentiu a jovem advogada, sorvendo um gole de água no squeeze e andando na direção de outro aparelho a fim de se esquivar daquele sujeito inconveniente, metido a sabichão. Em que merda de academia ela foi se matricular. Se arrependimento matasse...

— É que eu sei a real das paradas — insistiu o rapaz, dois passos à frente, grudando na mina mais que carrapato em pata de cavalo. — Infelizmente, o Brasil tá cheio de gente analfabeta, que nem deveria ter o direito de votar. Acaba vendendo seu voto em troca de um Bolsa Família qualquer. Ou é enganada pela imprensa e pelos políticos de esquerda, esse bando de ladrão defensor de bandido.

As últimas frases soaram como aço estridente aos ouvidos da advogada. Seria possível "desouvir"? A moça levantou as sobrancelhas - primeiro uma e depois a outra, coisa que eu nunca consegui fazer - e coçou as tranças, incapaz de disfarçar seu desapontamento com aquela sequência de chavões. Por instinto, tocou a guia de Iansã que carregava no pulso, tateando por alguns instantes as contas terracotas como quem pede inspiração aos que vieram antes dela, e respirou fundo antes de responder.

— Você está se referindo ao Lula, correto?

— É claro. Não sou marginal pra votar no nove dedos, o maior ladrão que o Brasil já teve.

— E vai votar no Bolsonaro?

— Precisa responder? Sou patriota, amo o meu país. Lugar de ladrão é na cadeia.

A jovem se lembrou do exame da OAB, ainda fresco em sua mente, e de algumas atividades que havia presenciado nos anos anteriores, na Sala dos Estudantes ou no Salão Nobre da Faculdade de Direito. Na ocasião mais recente, testemunhou a leitura da sentença do Tribunal Permanente dos Povos, que condenou o presidente da República por crimes cometidos contra a humanidade durante a pandemia do novo coronavírus.

— Certo. Mas vem cá, você sabia que seu candidato entrou na política nos anos 1980, logo depois de ficar famoso por ter elaborado um plano para explodir bombas em quartéis? Explodir bombas é crime previsto no artigo 251 do Código Penal, sabia? Naquela época era pior. Uma pessoa que fizesse algo parecido em quartéis e outros equipamentos do Estado poderia ser enquadrada na Lei de Segurança Nacional e condenada a algo entre três e dez anos de reclusão, conforme o artigo 20.

— Isso aí foi intriga da revista Veja na época. E a culpada foi a jornalista que escreveu a matéria. Jornalista é tudo igual, não tem uma que presta. Queria dar o furo também.

— Sei. E você sabia que seu candidato declarou mais de uma vez, publicamente, que é favorável à tortura? Pois bem. Tortura também é crime, tipificado na Lei 9.455 e passível de dois a oito anos de reclusão? Em outra ocasião, ele disse que o erro da ditadura foi ter torturado e não matado. Lembra disso? Pois adivinha? Homicídio é crime também, previsto no artigo 121 do Código Penal e passível de seis a vinte anos de reclusão.

— Mas ele não cometeu nenhum desses crimes. Ele só falou essas coisas. É crime falar, por acaso? Você sabe como ele é. É o jeitão dele, meio explosivo.

— Pois é, às vezes não é só o jeitão que é explosivo. Estou apenas expondo alguns episódios em que ele se mostrou conivente, favorável ou entusiasta da prática de alguns crimes. Bolsonaro gosta de elogiar o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, por exemplo, o cara que coordenou o maior centro de tortura de São Paulo e que foi responsável diretamente por mais de cinquenta mortes na primeira metade da década de 1970. Esses elogios podem ser qualificados como "apologia de fato criminoso ou de autor de crimes", conforme o artigo 287 do Código Penal. A pena prevista é de detenção de três a seis meses ou multa. Interessante, não?

— Ele tem direito de expor sua opinião, ora. E a liberdade de expressão, como fica?

— Liberdade de expressão não significa liberdade de agressão nem liberdade de estimular crimes. Presumo que você também considere normal Bolsonaro sugerir "fuzilar a petralhada", como fez no Acre em 2018. Neste caso, só pra reforçar, o artigo 286 do Código Penal prevê pena de detenção de três a seis meses e multa para quem "incitar, publicamente, a prática de crime". Não é bonito? Vai somando os anos aí.

— Puta que pariu, já vi que você é lulista, ainda por cima. Gente como você deveria ser proibida de entrar em lugares como este.

— "Gente como você"? O que você quer dizer com isso? Gente que se manifesta politicamente? Pois o artigo 5º da Constituição, no inciso IV, diz que é livre a manifestação do pensamento. Você é contra, né? Típico. Seu candidato também não lida bem com opiniões divergentes, por isso costuma perseguir "gente como eu".

— Pronto, tava demorando para começar o mimimi. Daqui a pouco vai começar a defender as cotas e me chamar de racista.

— Bom, se a expressão "gente como você" se refere à minha cor, aí o crime é de injúria racial, com pena de um a seis meses de reclusão e multa segundo o artigo 140 do Código Penal. Também pode evoluir para crime de racismo, tipificado na Lei 12.288 de 2010, que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial. Neste caso, a pena, prevista no artigo 5º do Código Penal, é de um a três anos de reclusão sempre que alguém, por exemplo, "impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador". Foi isso que você sugeriu, não foi? Quais eram as palavras que você usou? Gente como eu "deveria ser proibida de entrar em lugares como este".

— Você é louca.

— Seu candidato, vale lembrar, é useiro e vezeiro nesse tipo de comentário. Ele faz troça, faz piada, pratica o que o advogado Adilson José Moreira chamou de racismo recreativo. Numa das ocasiões mais conhecidas, em 2017, mencionou uma comunidade quilombola num discurso e afirmou que "o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas". "Não fazem nada", disse. "Eu acho que nem para procriador eles servem mais." Este é só um exemplo entre muitos.

— Não viaja. Bolsonaro gosta de negros. Ele até tem amigos que são. E o Sérgio Camargo concorda com ele.

— Ah, tá. A Preta Gil que o diga. Qual foi mesmo a palavra que ele usou para responder a ela no CQC? Dá um Google aí. Promíscua, não foi? Ela perguntou a ele sobre a hipótese de um de seus filhos namorar uma mulher negra e ele respondeu que não ia discutir promiscuidade.

— Ele entendeu que ela tinha perguntado o que ele acharia se o filho namorasse um homem gay, e não uma mulher preta. Ele já explicou isso umas duzentas vezes. E vocês nessas picuinhas, nessas questões identitárias.

— Não são questões identitárias. De qualquer modo, é bom ficar de olho. Associar gay a promiscuidade também é crime. Neste caso, crime de homofobia, equiparado ao crime de racismo pelo STF. Dá um Google aí. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, número 26 de 2019. Quem declara publicamente coisas como "preferia ter um filho morto a um filho homossexual", segundo a lei, está sujeito a pena de um a três anos de reclusão.

— Tudo isso é besteira. O Brasil corre o risco de virar uma Venezuela e você preocupada com o jeito com que o presidente trata viado? Não tem cabimento.

— Bom, tecnicamente, tem. Até porque não são apenas os gays e os negros que ele ofende. Podemos falar das meninas venezuelanas. Tem algo de errado em concluir que uma adolescente que se arruma num sábado à tarde só o faz se for para "ganhar a vida", não acha? Se ficar configurado preconceito em razão da nacionalidade das meninas, há crime de xenofobia, tipificado no artigo 20 da Lei 7.716, de 1989. Pena de um a três anos de reclusão para quem "praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional", conforme a redação atualizada em 1997. Agora, se ficar configurada a tentativa de aliciamento ou assédio das garotas, com esse papo de pintar um clima e entrar na casa delas, pode ser crime de pedofilia. Pedofilia você sabe que é crime, né? Não acredito que possa existir alguém que não seja contra a pedofilia.

— Ah, pronto. Agora você vai defender aquelas garotas de programa?

— Êpa. Garotas de programa? Você as conhece? Você estava lá? Você tem provas? Essa é uma acusação muito séria, porque configura injúria e difamação de menores, crimes previstos nos artigos 139 e 140 do Código Penal. As penas são, respectivamente, reclusão de um a seis meses e de três meses a um ano. Além disso, se uma criança ou adolescente se prostitui, o que temos na realidade é outro crime, o aliciamento de menor. E se o presidente da República testemunhou esse crime e não tomou nenhuma providência, então ele poderia, em tese, ser acusado de cumplicidade. Já imaginou?

— Você não existe. Só falta dizer que ele estuprou as garotas. Kkkkk.

— Olha, acredito sinceramente que ele não tenha chegado a tanto. Mas, no âmbito do simbólico, vale lembrar que não seria a primeira vez que ele teria aventado essa possibilidade. Procura aí Maria do Rosário, Bolsonaro e estupro no Google. Vale lembrar que o crime de ameaça também está tipificado no Código Penal, no artigo 147. Isso sem falar na alta dos preços, na volta da fome e da inflação, no aumento do desemprego.

— Isso tudo é culpa da pandemia, estúpida.

— Ah, sim, a pandemia, bem lembrado. Houve uma CPI da Covid e o relator elencou nada menos do que nove crimes supostamente cometidos por Bolsonaro. Eu te digo quais foram. Prevaricação, charlatanismo, epidemia com resultado morte, infração a medidas sanitárias preventivas, emprego irregular de verba pública, incitação ao crime, falsificação de documentos particulares, crime de responsabilidade e crimes contra a humanidade. É claro que tudo que estou dizendo fica na esfera da hipótese. São coisas que poderiam suscitar investigações, inquéritos, processos e acusações formais. Não é bolinho.

— Pelo menos eu não voto em ladrão.

— Não? Tem certeza? Você está sabendo dos mais de cem imóveis atribuídos à família Bolsonaro, 51 deles comprados parcialmente com dinheiro vivo, formando um patrimônio incompatível com a renda obtida por meio dos salários? E a rachadinha? Nos grupos de WhatsApp já explicaram que esta é uma prática ilegal, que consiste em contratar assessores sob a condição de que eles devolvam parte de seus salários aos chefes, ou seja, aos próprios parlamentares? Que tal buscar no Google as palavras Bolsonaro e rachadinha para ver quem são os parlamentares investigados? Aliás, rachadinha é um nome fofo para falar de fraude, corrupção, lavagem de dinheiro e improbidade administrativa. Muitos crimes, não?

— Teu candidato esteve à frente do mensalão, o maior atentado contra os cofres públicos da história do Brasil, e você vem falar de imóveis e de rachadinha...

— O problema de ser informado apenas por WhatsApp é que não há quem tire a venda dos olhos. O tal do mensalão, em 2005, investigou um suposto esquema de pagamento mensal de propinas que giravam em torno de R$ 30 mil. O "valerioduto", como foi apelidado o sistema por meio do qual recursos públicos seriam desviados para a empresa do publicitário Marcos Valério e dela para o pagamento dessas mensalidades, teria escoado pouco mais de R$ 100 milhões. Após mais de um ano de investigação, foi comprovado o crime de caixa 2, mas não o pagamento das propinas mensais com a finalidade de comprar votos no legislativo, teor da acusação principal. Ou seja: o mensalão não foi confirmado. Já o orçamento secreto do governo Bolsonaro, também conhecido como "bolsolão", está aí pra todo mundo ver e engoliu nada menos que R$ 44 bilhões entre 2020 e 2022 em compra de apoio em troca de emendas parlamentares. Uma imensidão de dinheiro desviado, centenas de vezes maior. A gente só não tem acesso aos detalhes. Se tivesse, não seria secreto. Transparência zero, como de praxe.

— Isso não quer dizer nada.

— Ah, não? Você assiste ao aparelhamento do Legislativo por meio do orçamento secreto, o maior esquema de uso de recursos públicos para fins eleitorais já registrado no Brasil, saqueando a União e retirando dinheiro de todas as pastas, dos principais programas de governo, das políticas públicas mais necessárias, da agricultura às universidades, da educação à saúde, e acha tudo lindo?

— Você viu a sentença? Teve condenação?

— Não, meu querido. O que teve foi sigilo de 100 anos. E quatro trocas de comando da Polícia Federal em menos de quatro anos. Mas isso você não chama de censura, certo? Provavelmente, nem considera crime tudo isso que eu listei. Só conhece um único crime, o crime de furto. Todo o resto é normal, resguardado pelo direito à liberdade de expressão. Apologia à tortura ("eu sou favorável à tortura, você sabe") é aceitável. Apologia ao estupro ("só não te estupro porque você não merece") é compreensível. Apologia a homicídios ("devia ter matado uns 30 mil, começando com o FHC") é razoável. Homofobia ("prefiro ter um filho morto a um filho gay") é uma dádiva. Racismo ("o afrodescendente mais leve pesava sete arrobas; não fazem nada") é um dever. Pedofilia ("pintou um clima") é algo natural entre os machos. Diz que não tem bandido de estimação, mas não se envergonha de ter machista de estimação, racista de estimação, mentiroso de estimação, pedófilo, torturador ou miliciano de estimação. Espalha fake news e tumultua as eleições com acusações irresponsáveis sobre urnas, rituais satânicos ou ameaça de fechamento de igrejas. Tudo isso pode. Só não pode ser ladrão. Vocês não existem.

— Mas e o PT, hein? E o Lula?

— Ah, me poupe.