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Carlos Madeiro

REPORTAGEM

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'Nunca vivemos momento tão ruim em nossa história', diz Janine Ribeiro

Renato Janine Ribeiro durante abertura da reunião da SBPC, na UnB   - Jardel Rodrigues/SBPC
Renato Janine Ribeiro durante abertura da reunião da SBPC, na UnB Imagem: Jardel Rodrigues/SBPC

Colunista do UOL

31/07/2022 04h00

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Depois de dois anos de encontros apenas virtuais devido à pandemia, a ciência brasileira voltou a se reunir na semana passada para a 74ª reunião anual da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), na UnB (Universidade de Brasília).

O evento juntou cientistas de todas as áreas em debates que foram de covid-19 a urnas eletrônicas. Também estiveram presentes dois dos três presidenciáveis mais bem posicionados nas pesquisas de intenção de voto, convidados para falar sobre propostas para a ciência: Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Ciro Gomes (PDT). Jair Bolsonaro (PL) alegou "compromissos preestabelecidos" para não comparecer.

Ao fim da reunião, o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, conversou com a coluna e fez um balanço não só do evento, mas da situação atual.

"Nunca tivemos um momento tão ruim na nossa história desde o período colonial. Ele é preocupante porque temos um país muito mais complexo do que há algumas décadas e que está devastado por ódio, ignorância e perseguição às coisas boas", diz.

Ribeiro é professor de filosofia da USP (Universidade de São Paulo), cientista político e escritor. Chegou a ser ministro da Educação entre abril e outubro de 2015, durante o governo Dilma Rousseff (PT).

Leia a entrevista:

UOL - Qual o balanço o senhor faz dessa reunião da ciência após dois anos sem encontro da SBPC?

Renato Janine Ribeiro - A reunião foi muito bem-sucedida e tínhamos muita expectativa. Fizemos muitos investimentos porque, depois de dois anos de pandemia e sem reuniões presenciais, as pessoas tinham a necessidade de trocar opiniões, ideias, projetos e saber como vamos melhorar o Brasil com conhecimento rigoroso científico; sobretudo como melhorar um país que caiu tão baixo. Tivemos a covid, em que passamos mais desprotegidos do que outros países; faltou uma política também para o ensino remoto, que foi feito sem nenhum comando do governo federal. Todos esses pontos deixaram sequelas, e todas foram discutidas.

Quisemos mostrar o papel da ciência para melhorar a vida das pessoas e indicar que a falta de ciência é extremamente danosa."

O senhor está confiante de que vamos conseguir avançar após essa crise?

Acho que sim, porque há uma predominância no Brasil de que é preciso preservar a vida das pessoas; que a educação é importante; que o desenvolvimento econômico deve ser retomado com a qualificação da mão de obra e descobrimento de invenções na área da ciência.

A reunião teve a presença de dois presidenciáveis, que assinaram o compromisso com as propostas da SBPC para melhorar o país. Foi importante?

Foi importante. Essas conversas demandaram muito empenho. Nós convidamos os três mais bem colocados. O presidente Bolsonaro respondeu negativamente —e somente disse isso após a vinda do ex-presidente Lula. Eu penso que a vinda do Lula foi, sem dúvida, o evento mais concorrido, com muitas pessoas assistindo, mas sem nenhum incidente, briga, nada disso. A exposição do candidato Ciro também foi boa, com ideias inteligentes. Mas também tivemos a presença das principais agências [federais] de pesquisa, do ministro [de Ciência, Tecnologia e Inovações, Paulo Alvim] e todos ouviram os reclames da ciência e foram tratados com absoluto respeito, como tem de ser.

Ministro Paulo Alvim (à esquerda) ouve pergunta de cientista durante palestra na SBPC  - SBPC/Divulgação - SBPC/Divulgação
Ministro Paulo Alvim (à esquerda) ouve pergunta de cientista durante palestra na SBPC
Imagem: SBPC/Divulgação

Nos últimos tempos, em especial na pandemia, vimos uma resistência ideológica das pessoas ao conhecimento científico, com gente inclusive negando vacina. Por que chegamos a essa divisão?

O fato é que a ciência, em princípio, é neutra; ela está lidando com a verdade, só que não é absoluta, mas provisória —porque o que se diz hoje vai ser aprimorado amanhã. Já a política depende de valores, que podem ser antagônicos. Se dois ou mais lados forem democráticos, isso é legítimo. Você pode ter uma política para a economia mais à esquerda, mais à direita, desde que se cumpram as regras do jogo e que se respeitem as finalidades previstas na Constituição, que previu, por exemplo, que o Brasil seria um país sem fome, sem preconceito, socialmente justo e próspero. A ciência é uma ideia iluminista, ela dissipa as trevas da ignorância, do preconceito. Isso ocorreu desde o século 18. Isso faz com que preconceitos sejam inaceitáveis.

Se pensarmos em preconceitos da vida cotidiana, como racismo, homofobia; nada disso tem guarida da ciência, que nesse caso tem seu lado mais progressista."

Como o país pode sair dessa enrascada do negacionismo?

Não vai ser fácil, vai ser demorado, mas só saímos tendo educação, pesquisa. Tem de investir, e isso vai demorar um certo tempo. Outro dia uma pessoa me dizia que existe uma certa celebração da ignorância, as pessoas ficam felizes quando ouvem alguém no poder ignorante como ela. É estranho isso.

A ciência enfrentou vários cortes de verbas nos últimos anos. Isso afetou muito o setor?

Sem dúvida, o momento é difícil. Veja o caso do supercomputador Tupã, do Inpe [Instituto Nacional de Pesquisa Espacial]: nós o visitamos, e a gente viu o problema de um órgão desfalcado de muitos quadros. Como vai tocar seu trabalho assim? Tudo isso vai demorar para ser recomposto, vai depender de verbas públicas para consertar o que ficou quebrado ou se perdeu; para investir em coisas novas e atrair brasileiros que foram embora. Tem muita coisa a ser feita.

A estrutura da ciência foi sucateada?

Com certeza porque você não vem dando manutenção. E o que acontece se você tem um laboratório e não o mantém com manutenção em dia? Você perde o laboratório inteiro. É o equivalente a não botar óleo no carro: ele vale mais de mil vezes que o óleo, mas se você não puser, pode perder tudo. É isso que está ocorrendo com o Brasil.

Diante desse cenário, qual será a missão do próximo presidente ou de uma segunda gestão de Bolsonaro?

O presidente que assumir vai ter uma lista tão grande que vai ser difícil dar prioridade no meio disso tudo. Temos gente com fome, tem universidade sem dinheiro para terminar o ano. A gente pode até dizer: a fome é prioridade, mas para isso precisa também de conhecimento rigoroso, precisa saber onde e de que maneira vai produzir alimentos.

Esse momento de hoje se compara com algum outro na nossa história recente?

Não, nunca tivemos um momento tão ruim na nossa história desde o período colonial. Ele é tão preocupante porque temos um país muito mais complexo do que há algumas décadas e que está devastado por ódio, ignorância e perseguição às coisas boas. Temos a destruição da Amazônia, pobreza crescendo, fome voltando, deficiência na educação, cultura. Nunca tivemos uma coisa assim.

Agora a gente tem de tentar recompor, sem deixar que se perca mais. Esse é o grande desafio agora do país."