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Carlos Madeiro

REPORTAGEM

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'Enfrentamento': astrofísico baiano usa a ciência contra o preconceito

Astrofísico Alan Alves Brito, no Observatório Astronômico da UFRGS, em Porto Alegre - André Feltes/Folhapress
Astrofísico Alan Alves Brito, no Observatório Astronômico da UFRGS, em Porto Alegre Imagem: André Feltes/Folhapress

Colunista do UOL

29/07/2022 04h00

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O astrofísico baiano Alan Alves Brito, 44, recebeu no último domingo do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) o prêmio José Reis de divulgação científica e tecnológica de 2022. A honraria —mais uma em sua carreira— foi entregue na abertura do maior evento da ciência do país, a reunião anual da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), em Brasília.

Saído de Feira de Santana, no semiárido baiano, o professor, pesquisador, divulgador científico e escritor é uma história viva —e atuante— da resistência de quem carrega consigo estereótipos ainda marcados por preconceito no nosso país, como ser homossexual e negro.

Desde 2014, ele é professor da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), com atuação em astrofísica estelar. Sem abrir mão do sotaque do interior baiano, ele se tornou uma referência na área.

"Como não gosto nem de muro, nem de armário, decidi ir para o enfrentamento. Eu ouvi aqui de uma quilombola: 'Há portas que só se abrem por dentro, você não pode desistir. Tem de estar lá para abrir essas portas'. Me arrepio sempre que lembro. O meu compromisso é ancestral", afirma.

Alan é filho de um homem analfabeto e de uma mãe que só tem o ensino básico. "Sou o primeiro em gerações da minha família a entrar na universidade; o primeiro a ter doutorado; o primeiro a ser professor universitário", diz.

Pais de Alan moram na zona rural do interior da Bahia  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Pais de Alan moram na zona rural da Bahia
Imagem: Arquivo pessoal

Hoje, ele ajuda a família que ficou na Bahia. Seus pais, após se aposentarem, resolveram se mudar para uma casa na zona rural para estarem mais próximos da natureza.

"Meu salário é dividido, nunca foi só meu [risos]. Mas para mim essa não é a grande questão: a grande é fazer esse movimento, é estar dentro nesse espaço. Os corpos negros precisam ocupar a universidade."

Apoiado por políticas públicas

Graças ao apoio de instituições e políticas públicas, ele concluiu doutorado em astrofísica estelar pelo Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP (Universidade de São Paulo).

Nesse ínterim, antes de passar no concurso da UFRGS, foi pesquisador visitante em Portugal e na Alemanha e realizou estágios de pós-doutorado no Chile e na Austrália.

Não é fácil chegar à UFRGS em um país que mata negros, LGBTfóbico. Eu sou atravessado por vários marcadores sociais, mas sei que não cheguei aqui sozinho. Eu sou fruto de todas as políticas públicas que estão atrás de mim: a escola pública, as bolsas, a residência universitária, o bandejão. Não fosse isso, não estaria aqui."
Alan Brito, astrofísico

Hoje, Alan estuda a evolução química das diferentes populações estelares da galáxia.

Na universidade, assumiu vários papéis que vão além do Departamento de Astronomia do Instituto de Física. "Minha vida mudou completamente. Antes eu era só um pesquisador, e ali cheguei como professor."

Alan chefia o Núcleo de Estudos Africanos, Afro-Brasileiros e Indígenas e é coordenador substituto do Observatório Astronômico da UFRGS. Além disso, integra o comitê de políticas sócio-afirmativas da UFRGS e recentemente foi selecionado no programa de divulgadores científicos da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).

Alan recebe prêmio do CNPq durante reunião da SBPC, em Brasília - Jardel Rodrigues/SBPC - Jardel Rodrigues/SBPC
Alan recebe prêmio do CNPq durante reunião da SBPC, em Brasília
Imagem: Jardel Rodrigues/SBPC

Estabelecido em Porto Alegre, decidiu agir para unir a ciência com sua história afrodescendente. "Eu trago uma perspectiva de como a gente pode dialogar essa astronomia de forma intercultural com as cosmologias negras, africanas, quilombolas. Eu quero divulgar astrofísica descolonizando o conhecimento", diz.

Meu corpo agrega muitas questões. Esses movimentos [de entrada na universidade] nos tornam parte do sistema, e estou aqui para poder resistir, sobreviver e existir naquele espaço que não está preparado para mim. Isso é também um aquilombamento, tem um significado de resistência muito potente."
Alan Brito, astrofísico

A coluna conversou com Alan durante a reunião da SBPC, onde comandou a conferência "Oralituras: Divulgação Científica e Tecnológica para Adiar o Fim do Mundo", uma referência explícita ao escritor indígena Ailton Krenak, autor do livro "Ideias para Adiar o Fim do Mundo".

Alan durante participação na SBPC: divulgação de ciência e tecnologia para adiar o fim do mundo  - Carlos Madeiro/UOL - Carlos Madeiro/UOL
Alan durante participação na SBPC: divulgação de ciência e tecnologia para adiar o fim do mundo
Imagem: Carlos Madeiro/UOL

Ele lembra que, ainda na infância, sempre sonhou em ser astrônomo e, desde jovem, trabalhou com divulgação científica. "Aos 12 anos, fiz parte do Programa de Saúde do Adolescente na Bahia. Aos 13, montei um clube de ciência com crianças", conta.

Em Feira de Santana, ele diz que morou próximo a um observatório e sempre quis ser astrônomo. Em 1996, entrou na UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana), onde se formou em química.

"Depois passei em cinco programas de pós-graduação, mas escolhi a USP porque tive bolsa e residência estudantil", afirma.

Desde 2019, publicou oito livros. O primeiro, "Astrofísica para a Educação Básica: A Origem dos Elementos Químicos no Universo", foi finalista do Prêmio Jabuti em 2020 —a obra foi escrita em parceria com Neusa Teresinha Massoni.

Para ele, divulgar e popularizar a ciência é também um processo de inclusão. "Todos os meus livros são gestados a partir das minhas vivências. O fato é que precisamos dialogar e juntos construir outra ciência, adiar o fim do mundo", ressalta.

Ele reclama que, apesar do avanço nos últimos anos, ainda é preciso dar mais negritude aos espaços intelectuais. "No Brasil, 90% dos professores das universidades são brancos e em regra homens bem-nascidos. Na UFRGS, só 1% é negro, não há indígenas. As universidades têm um papel fundamental formando vários profissionais, é um espaço de disputa para nós."

Entretanto, ele ressalta um ponto que considera fundamental: unir ciência e o ativismo sempre em ação. "Não interessa só fazer o ativismo por ativismo. Eu estou na pós-graduação, escrevo livros, publico artigos, oriento alunos, faço divulgação científica", diz.

Muitos de meus colegas não precisam fazer isso, eles têm só os artigos das áreas específicas para se preocupar. Mas eu tenho outras demandas políticas: tenho de fazer parte das comissões dentro da universidade para ver se as políticas sócio-afirmativas estão chegando aonde tem de chegar e tenho que conciliar tudo isso com a minha carreira. Isso é luta e resistência."
Alan Brito, astrofísico

O cientista afirma que não há motivo para que a luta por inclusão cesse e vê com preocupação os cortes em bolsas de permanências e políticas de manutenção de estudantes nas universidades.

"Conseguimos esse espaço com uma luta histórica, nada nos foi dado pelo sistema. Precisamos seguir lutando. Os cortes são um projeto, uma escolha política para dizer: 'Não queremos vocês aqui'. Se cortam bolsas, um estudante pobre ou negro não fica. Se estou aqui hoje, é por essas políticas. Não podemos naturalizar a ausência de corpos negros da universidade. Esse lugar é estratégico para nós", finaliza.