CE: Mulher alega 'esgotamento emocional' e é absolvida por facada no marido
Depois de dez anos no banco dos réus, Maria (nome fictício) foi absolvida na última terça-feira (5) após júri popular realizado pela 1ª Vara do Júri de Fortaleza. Ela foi acusada de tentativa de homicídio do ex-marido, José (nome também fictício), mas a defesa usou a tese de esgotamento emocional e conseguiu a absolvição da mulher de 32 anos.
A tese da Defensoria Pública do Estado venceu a do Ministério Público do Ceará, que pediu a condenação de Maria por crime premeditado. Ela poderia, se condenada, pegar de seis a 20 anos de prisão. A Promotoria ainda não informou se vai recorrer da decisão.
O caso
Maria foi denunciada porque agrediu com uma facada o então namorado, no dia 2 de janeiro de 2014, em Fortaleza.
Ela foi presa em flagrante e chegou a ficar quatro meses detida, período em que seu filho morou com uma tia-avó materna. Mesmo solta, passou a responder por tentativa de homicídio.
Esse caso trazia uma situação de esgotamento mental, de violência doméstica, de carga emocional muito forte.
Defensora pública Michele Camelo
Michele é defensora na área de família, mas foi convidada a fazer parte da defesa do júri porque é pesquisadora da questão da sobrecarga da mulher no exercício da maternidade e está acostumada a lidar com casos de abandono paterno.
No julgamento, todo o contexto foi levado em conta. A começar pela própria história de vida de Maria, que não tem renda formal. Cresceu sem pai, nem mãe, e foi criada pelos avós, que já são falecidos.
Como ocorreu a briga
A briga entre Maria e José começou quando ela, que ainda não morava com ele à época, deixou o filho na casa do pai, para passar um período.
Foi então que ele cortou o cabelo da criança, que é negra. Para a mãe, tem uma questão identitária muito forte. E ele cortou por pirraça, como um ato de deboche. Aquilo foi muito forte para ela.
Michele Camelo
Quando Maria foi deixar o filho novamente com o pai, relata Michele, ela estava se sentindo desrespeitada enquanto mãe e esgotada física e mentalmente com a vida de "mãe solo".
Naquele dia, ao entregar o filho, chegou a dizer que só queria receber a criança de volta quando o cabelo crescesse novamente.
Quando chegou lá, José disse: 'eu sinto muito, não posso ficar com essa criança porque todas as pessoas que poderiam cuidar dela não estão aqui'. Ela saiu, e ele então entregou a criança para a irmã e correu para agredi-la.
Michele Camelo
Toda essa situação foi apresentada aos jurados na terça-feira, diz a defensora, para mostrar que, naquele momento, Maria estava esgotada, tendo agido em legítima defesa. José não depôs na Justiça.
Acusaram-na como se ela fosse uma mulher agressiva e com intenção de matar, e não é na verdade. Fomos desfazendo o argumento da acusação, pois se tratava de uma mulher exausta, esgotada e que dependia de uma rede de apoio --que não existia. Contextualizamos ali, ela como vítima, que passou anos vivendo violência. É uma situação de desespero por exercer uma parentalidade sozinha.
Michele Camelo
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Quero receberReconciliação e outro filho
Maria e José ainda se reconciliaram depois da facada, tendo outro filho juntos. O relacionamento só foi encerrado de vez em 2022.
Nesse meio tempo, Maria chegou a denunciar José à Delegacia da Mulher duas vezes: uma por ameaça e outra por agressão física (uma paulada que recebeu no rosto). Nenhum dos processos caminhou.
À época dos fatos, ela era uma moça de 22 anos, que estava sendo vítima de violência doméstica, não tinha rede de apoio e estava com a criança de um ano e três meses.
Michele Camelo
Questão de gênero no judiciário
Michele faz parte de grupo "Coletiva Defensoras", que se dedica a estudar questões de gênero no judiciário, dentre outros temas.
Nós temos discutido quais são as posturas, como é que deve ser essa abordagem e o que nós precisamos fazer para fortalecer esse discurso e torná-lo visível.
Michele Camelo
Segundo ela, o esgotamento das mulheres é um tema recorrente de pesquisas, que ganharam mais força na pandemia, quando o trabalho doméstico começou a chamar a atenção.
Eu vejo o quanto isso impacta no cotidiano e o quanto isso deve ser levado em consideração nas decisões judiciais. Meu papel foi mostrar ao júri quem era essa mulher, que ficou dez anos no banco dos réus.
Michele Camelo
Ela diz que já tem visto uma mudança de postura do judiciário, com decisões de tribunais levando em conta o trabalho em casa, por exemplo, como atividade que abate a pena no caso da prisão domiciliar de mulheres.
Temos muitas decisões esparsas em que se reconhece, por exemplo, um aumento de pensão alimentícia necessário quando esse pai não exerce a sua parentalidade como deveria. O que esse júri mostra é que a gente não pode negar um contexto de gênero que envolve violência, cansaço, esgotamento.
Michele Camelo
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