Carlos Madeiro

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Reportagem

Extrair urânio gastará 600 milhões de litros de água por mês do semiárido

O uso de grande quantidade de água previsto no maior projeto de mineração de urânio do país, em Santa Quitéria (semiárido do Ceará), está sendo apontado por especialistas como um risco ao abastecimento de comunidades que dependem do mesmo reservatório, o Edson Queiroz. O PSQ (projeto Santa Quitéria) vai precisar de 855 mil litros de água por hora, ou cerca de 20,5 milhões por dia e cerca de 600 milhões por mês.

No último dia 11, um parecer técnico-científico assinado por 23 especialistas foi apresentado ao Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) durante audiência pública que debateu o projeto. Ele aponta que os estudos apresentados pelo empreendedor não dão segurança de que a água usada não vai impactar o abastecimento de comunidades e projetos de pequena irrigação no município durante momentos de seca.

O empreendimento, se tiver as autorizações que lhe faltam, deve retirar fosfato (reservas de 8,9 milhões de toneladas) e urânio (80 mil toneladas) da fazenda Itatiaia, que tem 4.042 hectares, por duas décadas. Será a maior unidade de beneficiamento de urânio no país, localizada a 220 km de Fortaleza.

"Segundo o Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento, uma pessoa no Ceará consome em média 137 litros de água por dia; 20 milhões de litros equivale ao abastecimento de 145 mil pessoas", diz Patrícia Vasconcelos Frota, geógrafa, professora da Universidade Estadual Vale do Acaraú e uma das pesquisadoras que assina o parecer.

O medo de faltar água no futuro leva dezenas de moradores a protestarem na cidade durante os dois dias de audiência. A construção do empreendimento, por sinal, é reprovada por grande parte dos moradores que temem, além da falta, uma contaminação da água e do ar e estigmatização por conta da radiação que poderia ser emitida na área.

O empreendimento nega riscos e alega que tem feito estudos que garantem a segurança do projeto (leia mais abaixo).

Sede do consórcio Santa Quitéria (CE) pichada no dia da audiência pública
Sede do consórcio Santa Quitéria (CE) pichada no dia da audiência pública Imagem: Quitéria Ivana Soares/A Voz de Santa Quitéria

Entenda mais

Quem está à frente do projeto é o Consórcio Santa Quitéria, formado pelo INB (Indústrias Nucleares do Brasil) e a empresa de fertilizantes Galvani. A presença do INB (órgão federal) se justifica porque o monopólio da extração de urânio no Brasil é estatal. O investimento previsto é de R$ 2,3 bilhões, e o urânio extraído vai abastecer as usinas de Angra.

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A água para abastecer o empreendimento virá do açude Edson Queiroz, popularmente conhecido como Serrote, localizado em Santa Quitéria. Inaugurado em 1987, ele tem capacidade para 254 bilhões de litros e é um dos maiores do estado. Apesar disso, em momentos de seca, ele chegou a ficar com 9,% de sua capacidade (em fevereiro de 2017).

Durante as obras, o abastecimento será feito por caminhões-pipa já a partir do açude Edson Queiroz. Já na fase de operação, o abastecimento será por meio de uma adutora de 64 km —entre o açude e o reservatório— que será construída pelo governo do Estado. A outorga dessa obra já foi dada pela Cogerh (Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos do Ceará) e tem validade até 30 maio de 2032.

No parecer, os pesquisadores alertam que "o tema hídrico se apresenta como um dos mais sensíveis nas discussões sobre a viabilidade do empreendimento, tendo em vista que o processo produtivo em questão demanda um alto volume hídrico e possui potencial de contaminação química e radiológica das águas."

Soma-se a isso o fato de estar sendo projetado para um ambiente de clima semiárido, onde o déficit hídrico é característico, devendo sofrer alterações profundas decorrentes de mudanças no regime de precipitação e aumento da frequência de eventos extremos nos próximos anos em decorrência do cenário de mudanças climáticas globais, elementos que devem ser considerados na análise de viabilidade socioambiental do empreendimento proposto.
Parecer

Açude Edson Queiroz em Santa Quitéria (CE)
Açude Edson Queiroz em Santa Quitéria (CE) Imagem: Governo do CE/Divulgação

História antiga de tentativas

O histórico da tentativa de aprovar a extração de urânio é antiga, mas não tinha avançado: teve licenças ambientais reprovadas pelo Ibama em 2004 e 2014.

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O primeiro processo de licenciamento ambiental ocorreu ainda entre os anos de 2004 e 2010, feito pela Semace (Superintendência Estadual do Meio Ambiente), foi invalidado por decisão da Justiça Federal, já que o Ibama deu parecer técnico ainda em 2005 apontando que o empreendimento "não é sustentável do ponto de vista dos recursos hídricos".

Após isso, o consórcio fez novos estudos e apresentou uma nova versão, que foi novamente negada. Agora, pela terceira vez, o empreendimento pede o licenciamento (as audiências públicas são parte do processo).

Segundo o Rima (Relatório de Impacto Ambiental) apresentado pelo empreendedor na audiência pública do dia 11, mudanças no projeto original possibilitaram uma readequação do uso da água. Na nova versão, o consumo de água caiu de 17%: de 1.036 m³/h para 855 m³/h.

O documento do Ibama cita que estudos de órgãos do governo do Ceará garantem que o açude "possui capacidade suficiente para abastecer o PSQ sem prejuízos ao consumo das comunidades." "No caso de eventual escassez, a prioridade de consumo é o ser humano, seguido dos animais", diz.

Mesmo no pior cenário histórico do açude Edson Queiroz, o consumo do PSQ não ultrapassaria 3% do volume do reservatório no mês e, portanto, não afetaria o abastecimento. No cenário atual, o consumo mensal seria de, no máximo, 0,5% do volume do reservatório.
Rima

Além de abastecer a indústria, a água também será usada para abastecer comunidades locais. "o volume de água será suficiente para atender 100% da população dessas localidades."

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Fazenda Itatiaia, onde pode ser instalado o projeto Santa Quitéria
Fazenda Itatiaia, onde pode ser instalado o projeto Santa Quitéria Imagem: Consórcio Santa Quitéria/Divulgação

Questionamentos

A pesquisadora Patrícia afirma que os argumentos do Rima são insuficientes e até contraditórios, já que a região tem, além de chuvas escassas, uma concentração no primeiro semestre do ano. Além disso, com frequência enfrenta secas. "Entre 2013 e 2024 tivemos cinco anos de precipitação observada abaixo da média normal climatológica", cita.

O açude Edson Queiroz contribui para atendimento de múltiplos usos na bacia hidrográfica do Acaraú, incluindo as demandas de abastecimento humano e irrigação no médio e baixo curso do rio Acaraú. A alta demanda de água localizada em território de déficit hídrico se insere no circuito de degradação dos sistemas hídricos e potencialmente afetará as demandas locais e regionais de água bruta, versando em termos da quantidade e da qualidade de água disponível aos demais usos da bacia.
Patrícia Vasconcelos Frota

Para ela, há "risco imenso de injustiça hídrica" ser causada pelo projeto, já que o projeto "diverge da soberania hídrica das comunidades tradicionais como indígenas e quilombolas. "As "compensações financeiras" são incapazes de garantir as condições de vida e trabalho anteriormente acessadas pelas comunidades, como a pesca artesanal e a agricultura familiar", diz.

Eles se sustentam na quantidade e qualidade de água disponível para abastecimento humano e produção de alimentos, numa região que mantém o protagonismo da reservade água bruta nos reservatórios e depende das chuvas para aporte. Em tempos de mudanças climáticas, flexibilização de licenciamentos e fragilidade nos processos de governança há muito o que temer.
Patrícia Vasconcelos Frota

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Localização da Fazenda Itatiaia, em Santa Quitéria
Localização da Fazenda Itatiaia, em Santa Quitéria Imagem: Consórcio Santa Quitéria

Sobre licenças e riscos

O projeto já possui duas licenças concedidas: uma pelo governo do estado para uso da água, de maio de 2022; e outra da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), que concedeu a licença de localização para a instalação da unidade em maio de 2024.

Falta ainda as licenças ambientais do Ibama; a primeira delas, a licença prévia. Após receber os relatórios do empreendedor, o Ibama aceitou em julho os documentos e está em fase de análise dos impactos da obra para decidir se ela poderá ou não ser executada. Caso sim, o órgão também apresenta as medidas de mitigação dos danos ambientais, as chamadas condicionantes, para que o projeto seja implantado.

O UOL consultou a assessoria do consórcio Santa Quitéria, que informou que "não foi ouvido ou convidado para contribuir com o parecer, tomando ciência apenas quando o mesmo foi entregue ao Ibama, durante a audiência pública realizada em Santa Quitéria (11/03)." "O documento está sendo analisado pela equipe do Projeto Santa Quitéria e, quando a análise for concluída, o PSQ se posicionará", diz.

Sobre o uso de água, a empresa já garantiu que "limitará suas atividades industriais ao volume de água definido pelos órgãos responsáveis", ou 20,5 milhões ao dia. "Em caso de escassez, a lei prevê prioridade para o abastecimento humano e animal", diz.

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Procurado pela coluna, o INB não retornou.

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