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Chico Alves

REPORTAGEM

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Governo do Brasil é túmulo do Carnaval, diz historiador Luiz Antonio Simas

O historiador e professor Luiz Antonio Simas - André Rodrigues/UOL
O historiador e professor Luiz Antonio Simas Imagem: André Rodrigues/UOL

Colunista do UOL

22/04/2022 04h00

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Apaixonado pelos desfiles das escolas de samba, o historiador Luiz Antonio Simas diz que vai ao Sambódromo para "ritualizar a vida". No sentido inverso, porém, a barra pesada da vida tem influenciado nos últimos anos os rituais das escolas. Os enredos de conteúdo político são cada vez mais frequentes.

Para Simas, esse movimento é positivo.

"Escola de samba está o tempo todo conectada com o tempo. Ela é feita por seu tempo e ela faz o seu tempo", diz o historiador. "Então, essa coisa de 'ah não pode misturar com política' é uma maluquice, porque nós somos políticos".

No desfile de 2022 há enredos que seguem diferentes caminhos para chegar a esse objetivo. Desde escolas que combatem o racismo religioso, exaltando a beleza dos orixás Exu (Grande Rio) e Oxóssi (Mocidade Independente), a críticas sociais mais diretas contra o preconceito, como é o caso da Beija-Flor.

Um trecho do samba da escola de Nilópolis diz: "Quem é sempre revistado é refém da acusação/ O racismo mascarado pela falsa abolição/ Por um novo nascimento, um levante, um compromisso/ Retirando o pensamento da entrada de serviço".

Em parte, Simas atribui essa tendência à redução de patrocínios nos desfiles do Sambódromo, que obrigaram as agremiações a retomarem assuntos mais ligados às rotinas das comunidades.

"Quando tem muito dinheiro o negócio desanda, parece que não dá certo", avalia. "Para mim, a pior fase das escolas foi aquela em que a grana rolou com mais facilidade. Em meados dos anos 90 e na primeira década do século 21, havia muito dinheiro, muito patrocínio, as escolas fazendo enredos patrocinados".

Nessa entrevista, ele fala da politização dos temas, chama atenção para a carência de novos compositores e diz acreditar que a tentativa do governo de Jair Bolsonaro de influenciar os desfiles não teve sucesso. Em outubro, o presidente da Liga das Escolas de Samba, Jorge Perlingeiro, esteve com o então secretário nacional de Cultura, Mário Frias.

"Pode ter ocorrido uma sondagem, uma tentativa, mas se houve foi um tiro pela culatra", acredita Simas. "O governo do Brasil atualmente é o túmulo do Carnaval, não há coisa mais anticarnavalesca do que a gente está vendo, essa experiência aterrorizante".

A seguir, os principais tópicos da entrevista, que pode ser vista na íntegra, em vídeo, aqui.


Enredos políticos x enredos patrocinados

"Vejo isso de uma forma bastante positiva. Porque a gente tem temáticas políticas e também temáticas ligadas ao complexo cultural, político, poético e religioso afrobrasileiro. Acho muito positivo até porque as escolas de samba se estruturam a partir da construção de sociabilidades negras no pós-abolição da escravatura.

Vou dizer uma coisa curiosa sobre os desfiles das escolas de samba: quando tem muito dinheiro o negócio desanda, parece que não dá certo. Para mim, a pior fase das escolas foi aquela em que a grana rolou com mais facilidade. Em meados dos anos 90, na primeira década do século 21, havia muito dinheiro, muito patrocínio, as escolas fazendo enredos patrocinados.

Salgueiro faz desfile homenageando a companhia aérea TAM, a Beija-Flor faz para a Varig, a Porto da Pedra faz para iogurte, as cidades mais duvidosas começam a lavar dinheiro em desfiles de Carnaval. Aquilo criava uma desconexão muito grande entre escolas de samba e suas comunidades. A qualidade dos sambas era uma porcaria. Como se vai fazer um samba bom com um enredo sobre xampú, sobre laticínios? Não há quem tire leite de pedra a esse ponto".

Audácia de novos carnavalescos

"Na falta de dinheiro, não há enredo patrocinado. Isso abre espaço para uma audácia de uma geração de carnavalescos que está chegando e apresentando suas ideias de forma vigorosa e as próprias escolas de samba mergulham em temáticas que são muito mais coerentes com suas trajetórias que enredos sobre lactobacilos na folia. Isso é positivo.

E o instante que nós vivemos, a crise em que estamos mergulhados, a ascensão da extrema-direita, todo o processo de colapso da economia, misturando tudo com uma pandemia terrível, isso desperta nas escolas de samba esse sentido comunitário e pedagógico. Então a gente tem uma leva de sambas-enredo que é extremamente interessante".

Escolas e MPB popularizaram rituais afro

"As escolas começam a desfilar em 1932. Mas as temáticas das religiosidades afrobrasileiras vão surgir muito depois. Antes, os desfiles falavam de efemérides da história oficial da pátria. Os personagens que apareciam no enredo eram Princesa Isabel, Oswaldo Cruz, Ruy Barbosa, Santos Dumont, batalha naval do Riachuelo. Até que as escolas de samba começam a ter uma conexão mais profunda com o universo cultural e espiritual afrobrasileiro. A primeira escola de grupo Especial do Rio a citar um orixá é o Império Serrano, em 1966, com o enredo "Glória e graças da Bahia".

Não tenho dúvida de que a escola de samba e a Música Popular Brasileira foram as duas instâncias mais poderosas para popularizar os rituais afrobrasileiros e consequentemente combater aquilo que eu não chamo de intolerância religiosa. Chamo de racismo religioso, já que está inserido na desqualificação dos campos simbólicos de elaboração da cultura dos não-brancos".

Em defesa dos orixás e dos povos indígenas

"Esse ano tem a Mocidade falando de Oxóssi, Grande Rio falando de Exu. Isso é fundamental. A gente continua querendo que as crianças estudem Zeus, Atena, Hermes e Poseidon nas escolas e não admite que estudem Xangô, Oxóssi, Oxalá? Isso é muito importante.

Unidos da Tijuca vem com enredo político, sobre o povo Saterê Mawê, o povo do guaraná, num contexto em que nós temos o obscurantismo, o negacionismo e o crime voltados contra a Amazônia e contra os povos originários. Então é importantíssimo a Unidos da Tijuca fazer isso. Está politizando a questão indígena de uma forma muito forte, muito contundente.

Escola de samba está o tempo todo conectada com o tempo. Ela é feita por seu tempo e ela faz em seu tempo. Então essa coisa de 'ah não pode misturar com política' é uma maluquice porque nós somos políticos. É a pólis, a gente está no exercício da política. Então acho muito positivo que ocorra. É por aí mesmo".

Governo federal tentou interferir no desfile?

"Pode ter ocorrido até uma tentativa, uma sondagem nesse sentido. Mas se houve foi um tiro pela culatra, porque o que a gente tem é um resultado completamente distinto. O governo do Brasil atualmente é o túmulo do Carnaval. Não tem coisa mais anticarnavalesca do que isso que a gente está vendo aí, essa experiência aterrorizante".

Economia do Carnaval

"As pessoas que não vivem o Carnaval têm a impressão de que é uma festa em que todo mundo é vagabundo... e tudo mais. Mas tem uma cadeia produtiva da economia ligada ao Carnaval que é crucial. Estamos falando de costureiras, de bordadeiras, de marceneiros, de ferreiros, de engenheiros, de escultores, de cantoras, de cantores, de músicos...

É impressionante. E considerando que os desfiles só ocorrerão agora, provavelmente o último setor que está voltando é o da economia criativa do Carnaval. Isso é muito sério".