Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Devoção da imprensa ao 'mercado' não faz bem ao Brasil
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Não existe entidade tão misteriosa na imprensa brasileira quanto o tal "mercado". Como um espírito que aparece na sessão de uma dessas cartomantes fake, o "mercado" fala pelos cotovelos, faz prognósticos, decide os destinos do país, mas quase nunca sai da penumbra para mostrar as caras.
Suas mensagens chegam ao público por meio de jornalistas que muitas vezes colocam essas previsões e análises acima de qualquer outro fator objetivo da economia brasileira.
Nos últimos quatro anos, o "mercado" andou sumido. Ficou restrito a alguns pequenos espaços do noticiário. Mesmo com o governo Jair Bolsonaro torrando R$ 16 bilhões no orçamento secreto, R$ 41 bilhões na PEC Kamikaze, aplicando calote nos precatórios e protagonizando outras barbeiragens, a entidade manteve discrição total.
Reaparece agora em sua encarnação mais espalhafatosa, depois da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva nas urnas. O motivo: um discurso emocionado em que o petista repetiu entre lágrimas conceitos que já apresentara várias vezes na campanha.
"Por que as pessoas são levadas a sofrer por conta de garantir a tal da estabilidade fiscal desse País?", questionou Lula, ontem. "Por que as mesmas pessoas que discutem teto de gastos com seriedade não discutem a questão social neste País?".
O "mercado" não gostou, segundo anunciaram os jornalistas que são seus porta-vozes. O dólar subiu, a bolsa caiu e as críticas ao discurso de Lula ocuparam grande espaço na mídia.
Faltou à imprensa, como em outras vezes, identificar melhor os autores das avaliações negativas. O deputado Marcelo Ramos (PSD-AM), que integra a equipe de transição do governo eleito na área de Indústria e Comércio, fez à coluna uma boa indagação: "Quem é esse mercado? São os operadores financeiros, que receberam a eleição de Lula com pessimismo? Ou são os grandes players, que com o resultado do segundo turno injetaram muitos dólares no país?"
Ele está certo. De maneira geral, esses que falam em nome do "mercado" não são identificados adequadamente. É preciso dar-lhes nomes, explicar quais são os interesses de cada um que opina, para que leitores, ouvintes e espectadores possam tirar conclusões. Em caso de entrevistas em off, que se saiba ao menos a que escola econômica ou em que ramo de negócios o entrevistado está inserido.
Houve economista que mostrou a cara dar estocadas agudas. Uma delas chegou a falar em "estelionato eleitoral", reclamou que Lula estava se revelando uma "Dilma" e interpretou as palavras do presidente eleito como se ele quisesse gastar indefinidamente por considerar que tem o monopólio "do bem".
Difícil encontrar no desabafo emocionado de Lula algo que permita tal interpretação. De qualquer forma, seria interessante saber para quem essa economista trabalha, quem são seus clientes. Não por desconfiança, mas apenas por uma providência útil para que o público entenda quais são os interesses de quem faz a crítica.
Quem também não gostou das declarações do presidente eleito foi Pedro Albuquerque Filho, CEO da TC Investimentos, que se autodefine como a maior plataforma de investimentos da América Latina. Ele escreveu no Twitter: "Momento Dilma Ibovespa -2.79% Bolsa americana +4.54% Discurso ruim, raivoso ainda eleitoral. Se peitar o mercado não termina o mandato. Ainda dá tempo de acordar?"
Quantos jornalistas têm como fonte Albuquerque, esse personagem que naturaliza o desrespeito à vontade que o eleitor manifestou nas urnas?
Por oposição àquilo que Lula falou em seu discurso, podemos entender que para o "mercado" o certo seria manter a estabilidade fiscal à custa do sofrimento dos brasileiros mais pobres? O governo Bolsonaro nem manteve a estabilidade e nem amenizou o sofrimento dos desvalidos. Apesar disso, o "mercado" não fez nenhum estardalhaço. Não parece sensato guiar políticas sociais por esse parâmetro.
Professora da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, a economista Monica de Bolle classifica a reação do "mercado" como ideológica e não cansa de pedir para que os jornalistas deixem de repetir as mensagens que essa entidade emite a torto e a direito, sem exercitar o senso crítico.
"E que esses últimos 4 anos sirvam para mostrar ao jornalismo econômico que sua relevância depende do entendimento de que a população que não trabalha no mercado não está interessada em análise econômica de elevador e sem compromisso com o País", ela sugeriu no Twitter.
Não se trata de conceder ao governo Lula salvo-conduto, cheque em branco ou qualquer coisa parecida. O papel do jornalismo é criticar, e sempre que o presidente eleito escorregar precisa ser chamado às falas. Mas usar um discurso de minutos para decretar a falência de um governo que ainda nem começou é um contrassenso.
Que as análises sobre o futuro governo sejam feitas de acordo com os pressupostos do bom jornalismo, não com submissão às referências do "mercado", essa entidade que na maioria das vezes não exige de seus interlocutores qualquer racionalidade, mas apenas pura devoção.
Amém.
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