Topo

Cristina Tardáguila

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Travessia: novela usa emoção contra fake news, mas precisa evitar ciladas

Lucy Alves é a protagonista Brisa de "Travessia" - Fábio Rocha / Globo
Lucy Alves é a protagonista Brisa de 'Travessia' Imagem: Fábio Rocha / Globo

Colunista do UOL

14/10/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

É claro que devemos comemorar que "Travessia", a nova novela das 9, na TV Globo, fale de "fake news". Tudo que for capaz de alertar a população para a existência das notícias falsas e de suas horrorosas consequências colabora - e muito - para a luta contra essa praga. Mas me permito fazer aqui um alerta a Glória Perez. Há perigosas ciladas no universo da desinformação - e os que se somam a essa batalha tendem a cair nelas.

Luto contra as notícias falsas há quase uma década - sempre a partir da checagem de fatos - e estou muito animada com "Travessia". O entretenimento (e toda a força da teledramaturgia brasileira), enfim, aterrissa no meu front. Juntos somos mais fortes. Se as notícias e as checagens ainda não deram conta de minimizar o impacto das "fake news" (aí estão as eleições e aqui o desabafo da semana passada), aguardo ansiosa que a beleza e a diversão proporcionadas pela novela o façam.

Comemorei o slogan de "Travessia". "A verdade nunca se rende" é uma frase curta e forte. Tomara que se espalhe pelo país, enterrando de vez os "fatos alternativos" e as mentiras que deles surgem.

Brisa, interpretada por Lucy Alves, tem tudo para mobilizar os brasileiros. Se tudo der certo, vai aplicar contra as notícias falsas exatamente aquilo que elas usam para crescer e se proliferar: a emoção.

Ao popularizar a triste história do linchamento de Fabiana de Jesus, ocorrido no Guarujá (SP) em 2014, Brisa possivelmente sensibilizará o país para a pior consequência das notícias falsas: o risco de morte. Seria muito bacana se Brisa mostrasse que o Brasil não está sozinho nesse horror. Que esse tipo de violência não "acontece só aqui". Na Índia, por exemplo, a desinformação mata centenas.

Numa das propagandas da novela, Brisa aparece dizendo que roubaram a vida e a identidade dela. Em seguida, se pergunta: "Como a gente se defende disso?".

Não vejo a hora de saber que resposta a premiada dramaturgia do Brasil dará para isso.

Seria muito impactante se, repetindo o que foi feito em outras novelas, "Travessia" trouxesse, ao fim de cada capítulo, um pequeno depoimento de vítimas da desinformação. Pessoas comuns, não-celebridades. É hora de deixar claro que fake news é um mal que pode afetar qualquer um.

Preocupa-me, no entanto, a história de Helô, a delegada que investiga crimes virtuais e que é interpretada por Giovanna Antonelli. A personagem parece ser durona e estar disposta a cumprir a lei. Nos anúncios de "Travessia", Helô diz que sabe que, quando algo cai na internet, é impossível de ser apagado e que nada impede que uma fake news reapareça no futuro, causando danos irreparáveis.

Ela está certa. Mas há dois pontos importantes aqui.

Será que a novela vai levantar o debate relativo ao direito ao esquecimento, considerado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como incompatível com a nossa Constituição? E será que os autores da novela sabem que "fake news" não é crime no Brasil, assim como não é em boa parte do mundo democrático?

A TV Globo foi procurada para responder essas questões, mas não havia retornado à coluna até o fechamento desta edição.

Entendo que a empatia que Brisa já gera entre noveleiros tende a empurrar o país na direção de pedidos de leis que busquem impedir o avanço das "fake news". E é justamente aí que reside a principal cilada da luta contra a desinformação. Acreditar que "fake news" se combate com regulamentação.

Não há - em nenhum lugar do mundo - provas concretas de que leis anti-desinformação são realmente capazes de conter as notícias falsas.

Indonésia, Malásia, Índia, Tailândia, Cingapura? são países que tomaram esse caminho há mais de dois anos e que até hoje não conseguiram demonstrar a aguardada redução da mentira virtual.

E o que pior: a censura cresceu exponencialmente nesses países. Opositores, críticos e até mesmo jornalistas foram silenciados ao terem seus conteúdos tachados como falsos. E não sou só eu que está dizendo. Quem estuda o assunto de perto sabe que qualquer lei que restrinja o conteúdo de postagens nas redes sociais ou aplicativos de mensagem não é uma saída nem óbvia nem universal. Há outras (várias) camadas de solução em cima da mesa (a educação é uma delas) e seria ótimo se "Travessia" trouxesse um personagem tratando disso.

Até imaginei (risos) que esse personagem pudesse ser um jornalista - um fact-checker. Alguém que, como os muitos checadores que atuam no Brasil, sofre ameaças e é alvo de ódio por simplesmente buscar a fatos, cairia bem e facilitaria o entendimento sobre o que fazem os checadores.

Seria muito negativo se "Travessia" ajudasse a revitalizar projetos de lei - de péssima qualidade - que já tramitam no Congresso. Desde 2020, checadores, pesquisadores e especialistas em direito digital já participaram de dezenas de eventos e revisaram diversas propostas tentando chegar a um texto coerente e útil. Até agora, falharam. Falhamos.

Há certo consenso em torno da ideia de que é muito inadequado criar uma lei focada no conteúdo de postagens. Que o caminho correto deve passar pela desmonetização dos desinformadores e pela educação. Mas o Brasil ainda está longe de entender isso. "Travessia" pode ajudar.

Desejo que personalidades premiadas como Glória Perez e Mauro Mendonça Filho, fujam da solução fácil de fazer com que a delegada Helô prenda quem produz fake news. Espero que promovam um debate robusto e factualmente correto sobre o assunto.

Para tanto, poderiam conversar com as organizações que se dedicam ao fact-checking no país. Há ao menos seis delas. Grupo internacionalmente reconhecidos e respeitados. Trabalhemos juntos contra as "fake news". De forma coordenada será ainda melhor.

Cristina Tardáguila é diretora do ICFJ e fundadora da Lupa