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Felipe Moura Brasil

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A bolha bolsonarista e o crepúsculo de Bolsonaro

Bolsonaro discursa em São Paulo no dia 7 de setembro - Reproduçãop
Bolsonaro discursa em São Paulo no dia 7 de setembro Imagem: Reproduçãop

Colunista do UOL

08/09/2021 13h09

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Em 1927, dez anos antes do Grande Terror de Stalin e seis anos antes de Hitler chegar ao poder, o ensaísta francês Julien Benda, autor do livro "A traição dos intelectuais" (no original, "La trahison des clercs"), "já temia que os escritores, jornalistas e ensaístas que haviam se transformado em empreendedores e propagandistas pudessem levar civilizações inteiras a atos de violência. E foi o que aconteceu", resumiu a escritora americana Ann Applebaum em "O crepúsculo da democracia", publicado em 2020.

Em seu tempo, Benda acusou os ideólogos de extrema-direita e extrema-esquerda de traírem a busca pela verdade, em favor de causas políticas particulares. "Se acontecer, a queda da democracia liberal em nosso próprio tempo não terá a mesma aparência das décadas de 1920 ou 1930", comparou Applebaum, mas "precisará de uma nova geração dos clercs" para "minar nossos valores atuais e imaginar um novo sistema".

Para manter o controle quase absoluto sobre as instituições do Estado húngaro, no regime que ele próprio chamou de "democracia iliberal", Viktor Orbán, por exemplo, também conta com seus propagandistas. No cargo, "o político iliberal quer enfraquecer os tribunais a fim de obter mais poder para si mesmo, mas como persuade os eleitores a aceitarem essas mudanças? Na Roma Antiga, César tinha escultores para criar múltiplas versões de sua imagem. Nenhum autoritarismo pode ter sucesso sem o equivalente moderno: os escritores, intelectuais, panfletários, blogueiros, assessores de imprensa, produtores de TV e criadores de memes que vendem sua imagem para o público."

Eu, Felipe, chamo os "clercs" de Jair Bolsonaro de claque bolsonarista. Desde que avançaram as investigações sobre a apropriação criminosa de dinheiro público nos gabinetes da família, os mecanismos obscuros de financiamento dos blogueiros de crachá e a omissão dolosa de socorro do governo ao povo brasileiro durante a pandemia de Covid-19, o presidente quer enfraquecer os tribunais a fim de obter mais poder para evitar a própria prisão e conta com sua claque para ajudá-lo a persuadir os eleitores não apenas a aceitarem essas potenciais mudanças, mas também a reivindicá-las nas ruas, como aconteceu em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo no feriado de 7 de setembro.

"O método de Orbán funciona: fale sobre questões emocionais. Apresente-se como defensor da civilização ocidental, especialmente no exterior. Dessa maneira, ninguém notará o nepotismo e a corrupção no ambiente doméstico", explicou Applebaum. Para lançar fumaça sobre seus telhados de vidro, Bolsonaro também fala sobre questões emocionais, apresentando-se como defensor das "liberdades", em contraposição ao ministro do STF Alexandre de Moraes. "Nós também não podemos continuar aceitando que uma pessoa específica da região dos Três Poderes continue barbarizando a nossa população. Não podemos aceitar mais prisões políticas para o nosso Brasil. Ou o chefe desse Poder [Luiz Fux] enquadra o seu [ministro], ou esse Poder pode sofrer aquilo que nós não queremos", ameaçou o presidente, flertando com um golpe de Estado.

As liberdades de expressão e crítica precisam de defesa, na verdade, contra tentativas reacionárias de perverter seu conceito, embutindo nele incitações ao crime e ameaças à integridade física, à vida humana e à democracia. Ninguém pode ameaçar os outros e as instituições impunemente. "Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave" é crime previsto no artigo 147 do Código Penal. A pena é detenção, de um a seis meses, ou multa.

As tentativas de golpe ou ameaças de cunho golpista também estavam previstas nos artigos 17, 18, 22 e 23 da Lei de Segurança Nacional (7.170/73), agora revogada, mas incorporada ao Código Penal, onde o artigo 359-L mantém criminalizadas tais práticas: "tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: pena - reclusão, de 4 a 8 anos, além da pena correspondente à violência".

Como o apelo emocional da narrativa sobre "presos políticos" perderia força se Bolsonaro e sua claque citassem as declarações delinquentes dos bolsonaristas detidos e as respectivas leis nas quais eles foram enquadrados, todas elas são providencialmente omitidas em prol de uma mensagem tanto mais conveniente e apelativa quanto mais genérica e rudimentar. No caso das prisões decretadas às vésperas da manifestação, eles também omitiram que os pedidos acatados por Moraes partiram da subprocuradora Lindôra Araújo, que ganhou poder na PGR de Augusto Aras, escolhido por Bolsonaro.

Eis alguns exemplos:

"Morte ao Careca do STF e a toda sua família!"; "terça-feira [7 de setembro] vamos te matar e matar toda a sua família, seu vagabundo"; "nós militares te eliminaremos"; "vou te dar um tiro de 762 no seu focinho e acabar com sua família. Morte ao Alexandre Imoral" - Cássio Rodrigues Costa Souza.

"Nós temos um grupamento no Brasil que nós vamos caçar ministros em qualquer lugar que eles estejam. Portugal, Espanha, Argentina... Tem um empresário grande que tá oferecendo, tem até uma grana federal que vai sair o valor pela cabeça do Alexandre de Moraes, vivo ou morto, pra quem trazer ele" - Márcio Giovani Nique.

"Tem 80% de chance de isso acontecer... O povo está vindo para Brasília para retomar o poder. E retomar o poder significa invadir a estrutura física, sim, tanto do Supremo Tribunal Federal como do Congresso Nacional" - Wellington Macedo.

As três prisões preventivas ocorreram em razão dessas e de outras barbaridades, mas, na propaganda vitimista da claque, elas se deram por "crime de opinião".

Em 1895, o psicólogo social francês Gustave Le Bon já mostrava, em "Psicologia das multidões", que "as multidões não são influenciáveis pelos raciocínios e só conseguem compreender grosseiras associações de ideias". "Por isso, é para os seus sentimentos, nunca para a sua razão, que apelam os oradores que sabem impressioná-las, que sabem que a lógica racional não exerce qualquer ação sobre elas."

"O poder das palavras", destacava Le Bon, "está ligado à imagem que elas evocam e é completamente independente do seu significado real. As palavras cujo sentido se encontra mais mal definido são por vezes as que possuem uma maior influência", "um poder verdadeiramente mágico, como se elas contivessem em si a solução de todos os problemas." Ele citava, entre outros exemplos, justamente "liberdade". De fato, o conceito mal entendido dessa palavra não soluciona o preço do feijão, da gasolina, do gás de cozinha, da luz e do dólar; a dívida de 89 bilhões de reais com precatórios; o desmantelamento de forças-tarefa anticorrupção; o desemprego de 14,8 milhões de brasileiros; muito menos 584 mil mortos por Covid-19. Mas, como apontava Le Bon: "a razão e os argumentos lutariam em vão contra certas palavras e certas fórmulas."

"Renovação" também pode ser uma delas. Bolsonaro havia dito que, com ele, o STF começou a ser renovado. Seu primeiro indicado, Kassio Nunes Marques, no entanto, ajudou a blindar Aécio Neves e Eduardo Azeredo, do PSDB, Ciro Nogueira e Arthur Lira, do Centrão, e contribuiu para retirar a delação de Antônio Palocci de um dos processos contra Lula, que o ministro também ajudou a blindar endossando em plenário o julgamento da suspeição de Sergio Moro. Os bolsonaristas saíram às ruas contra o Supremo, enquanto o presidente só renova na Corte a impunidade geral, da qual ele próprio quer um quinhão para si e seus filhos. Tanto que seu segundo indicado é André Mendonça, ex-assessor de Dias Toffoli para quem até José Dirceu faz campanha.

E daí?

"As multidões nunca tiveram sede de verdade", dizia Le Bon. "Diante de evidências que lhes desagradam, viram as costas e preferem divinizar o erro, se ele as seduzir. Quem as souber iludir, facilmente será seu senhor; quem as tentar desiludir, será sempre a sua vítima." Ou, como dizia Eric Voegelin (que citei no artigo "Dom Bolsonaro Del Centrão", um ano atrás): "Se a segunda realidade se torna dominante numa sociedade, quem quer que não esteja alienado da primeira pode apenas cometer alta traição."

A multidão de cadáveres e a inflação atrapalharam a segunda realidade bolsonarista a se tornar dominante na sociedade brasileira, mas 125 mil pessoas ainda estiveram na Av. Paulista para terceirizar as responsabilidades de Bolsonaro aos "traidores" da suposta pátria, como fazem nas redes sociais diariamente. "Não é o anseio de liberdade, mas o da servidão que sempre domina a alma das multidões. A fome de obediência que elas têm leva-as a submeterem-se instintivamente a quem se proclamar seu senhor", afirmava Le Bon, décadas antes de Friedrich Hayek publicar "O caminho para a servidão" (que citei em "Breve história do bolsolavismo").

O psicólogo social francês listava "a pouca aptidão para o raciocínio, a ausência de espírito crítico, a irritabilidade, a credulidade e o simplismo" como características da multidão eleitoral, agora tão bombardeada virtualmente com fake news que se dispõe a defender as "liberdades" da claque de desinformá-la e incitá-la ao golpismo.

"O apelo emocional de uma teoria da conspiração reside em sua simplicidade", escreveu Applebaum. "Ela explica fenômenos complexos, responde por acasos e acidentes e oferece ao apoiador a satisfatória sensação de ter acesso especial e privilegiado à verdade... As pessoas sempre tiveram opiniões diferentes. Agora têm fatos diferentes... Narrativas falsas, partidárias ou de algum modo enganosas se disseminam como incêndios digitais, como cascatas de falsidades que se movem rápido demais para que os fatos sejam conferidos. E, mesmo que fossem, já não importa: parte do público jamais lerá sites de checagem de fatos e, se o fizer, não acreditará no que ler... os próprios algoritmos das mídias sociais encorajam falsas percepções do mundo" e "também radicalizam os usuários... O resultado é um hiperpartidarismo..."

"Esse novo mundo da informação", prosseguiu Applebaum, "também fornece um novo conjunto de ferramentas e táticas que outra geração de clercs pode usar para chegar às pessoas que querem linguagem simples, símbolos poderosos e identidades claras. Não é preciso organizar um movimento nas ruas para apelar àqueles que possuem predisposição autoritária. É possível organizar um no escritório, em frente ao computador. Testar as mensagens e avaliar as respostas. Criar campanhas publicitárias direcionadas. Organizar grupos de fãs no WhatsApp ou no Telegram. Escolher temas... e ajustá-los sob medida para plateias particulares. Inventar memes, criar vídeos e elaborar slogans projetados para apelar precisamente ao medo e à raiva..."

Com foco na retórica do líder, não em suas ações, com distribuição de boquinhas em gabinetes a militantes virtuais e com aumento de verbas públicas para veículos que empregam a claque, é possível, até certo ponto, formar uma bolha onde verdades incômodas e nuances indesejadas não penetram e quem ousa trazê-las de fora para dentro é visto como Judas, assim como quem aplica as leis da primeira realidade contra qualquer membro da segunda, sobretudo no período ruidoso de adaptação do arcabouço legal ao avanço tecnológico usado para fabricar a fantasia política.

É exatamente isto que o bolsonarismo faz e que viabiliza um 7 de setembro permanente. A bolha bolsonarista, embora já minoritária na população, é fanatizada o suficiente tanto para ocupar alguns quarteirões em grandes cidades quanto para gerar monetização aos ideólogos que - por reacionarismo aloprado, oportunismo financeiro ou ambos os fatores - traíram a busca pela verdade, em favor de causas políticas particulares. Restou a Bolsonaro explorar essa bolha, como se fosse o povo nos braços do qual estará protegido contra as decisões de Moraes que ameaçou descumprir. "Eu nunca serei preso", disse o presidente, passando recibo de seu maior temor.

Contudo, a imagem de um mendigo deitado no chão, enquanto passavam por ele bolsonaristas com cartazes messiânicos, valeu mais do que mil palavras para mostrar que ainda há uma primeira realidade no caminho da segunda e que o governo Bolsonaro já vive o seu crepúsculo.