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O que é populismo e como Lula e Bolsonaro usam
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O populismo é uma estratégia discursiva de construção de uma fronteira que estabelece uma divisão radical da sociedade em dois campos antagônicos, mobilizando aqueles que se sentem excluídos contra aqueles que detêm, alegada e contingencialmente, o poder.
As bases dessa formulação ganharam força no campo esquerdista latino-americano a partir de Hegemonia e estratégia socialista, obra de 1985 do teórico político argentino de corrente pós-marxista Ernesto Laclau e de sua discípula belga Chantal Mouffe. Laclau aprimorou o conceito em A razão populista, de 2005 (e deu palestras a respeito, disponíveis no Youtube), até que Mouffe partiu dele para lançar abertamente uma proposta de intervenção política, com o livro Por um populismo de esquerda, de 2018.
O populismo em si é uma forma ideologicamente neutra de fazer política, no sentido de que pode assumir vários formatos ideológicos, conforme o lugar e o tempo, sendo igualmente compatível com uma variedade de enquadramentos institucionais. Ele não pressupõe uma ideologia à qual possa ser atribuído um conteúdo programático, mas, em razão de conjugar diferentes demandas populares em um discurso genérico que opõe "povo" e "establishment", é explorado por ambos os lados do espectro.
"Populismo é o futuro da política, acredito eu. Se é conservador e de direita, ou se é de esquerda é a questão", disse ao Estadão, em 2019, um ano e meio antes de ser preso por fraude, Steve Bannon, o ex-assessor de Donald Trump que integrou o bolsolavismo ao movimento global da direita populista. "O populismo de direita que foca na classe trabalhadora e classe média é o futuro. O fato de ter Trump, [o italiano Matteo] Salvini e [Jair] Bolsonaro, nos EUA, Europa e América do Sul, mostra que o modelo funciona. Os três se conectam com a classe trabalhadora de uma forma visceral."
Mouffe reage contra esse fenômeno. Ela propõe que as "resistências democráticas" ao "neoliberalismo" sejam expressadas "de forma progressista" e articuladas em prol do "aprofundamento da democracia". "Se a esquerda não perceber a importância de articular essas resistências com uma estratégia de populismo de esquerda, então é muito provável que o populismo de extrema-direita cresça mais, sem qualquer oposição competitiva", alertou em 2020, em entrevista à editora brasileira de seu livro.
"Quando fazemos uma fronteira entre o povo e o establishment - claro que não estamos referindo ao povo como categoria sociológica ou empírica, mas como categoria construída -, o povo pode ser construído de várias maneiras. O populismo de extrema-direita constrói-se com um discurso etnonacionalista, enquanto o populismo de esquerda o faz de forma muito mais inclusiva. Esta é a diferença", na visão da autora esquerdista.
O prefixo "etno", que se refere à etnia, foi usado por ela para criticar a francesa Marine Le Pen, por exemplo, por "construir uma narrativa em que os imigrantes são a causa da degradação das condições da classe trabalhadora", afetada pela globalização.
"Precisamos criar o que apelidei no livro que escrevi com Ernesto Laclau de 'cadeia de equivalências', ou seja, encontrar uma forma de articular as reivindicações para criar uma vontade coletiva. É isto que constitui o povo no populismo de esquerda."
O discurso de Lula contra os banqueiros, durante entrevista em 1º de julho a uma rádio da Bahia, é um exemplo ilustrativo do populismo de esquerda à moda lulista.
"Banqueiro não vota em mim. Eu tenho certeza que não vota em mim, porque eles olham a minha pele assim, eles falam 'pô, esse cara nem sabe falar direito', 'esse cara é nordestino', 'esse cara não tem diploma universitário', 'depois esse cara ganha, esse cara quer aumentar salário de trabalhador', 'depois esse cara quer regularizar o trabalho da empregada doméstica', 'depois a empregada da minha mulher vem trabalhar na sexta-feira com o perfume que a minha mulher usa', sabe, 'então, não dá, não dá, não dá'... 'Esse cara vai estimular o povo pobre a comprar carro e aí o trânsito vai ficar pior', 'esse presidente pobre vai incentivar o povo a viajar de avião, aí os aeroportos vão virar rodoviária'..."
Posando de "presidente pobre", o milionário Lula joga os pobres contra os outros ricos, fazendo uma caricatura negativa deles por meio do expediente de colocar na boca dos banqueiros declarações racistas, preconceituosas e contrárias às reivindicações de trabalhadores por maiores salários, benefícios e acessos a serviços e bens de consumo.
"Essas pessoas não podem ser ignorantes de quererem só acumular riqueza. 'Ah, o fulano de tal é o mais rico do mundo, tem 50 milhões de dólares, outro tem 70 milhões.' Pra quê? Você vai gastar no quê? Pra que você quer acumular tanto dinheiro, imbecil? Distribua parte disso em salário. Distribua com alguns benefícios."
Sergio Moro ironizou no Twitter a declaração de Lula:
"Ver Lula, o amigo das empreiteiras, com dezenas de milhões de reais recebidos por suas palestras, chamar os ricos, por serem ricos, de imbecis é o cúmulo da hipocrisia."
De fato, o petista recebeu, por meio de sua empresa de palestras, LILS (as iniciais de Luiz Inácio Lula da Silva), 27 milhões de reais, sendo que 9,8 milhões foram pagos por empreiteiras envolvidas no petrolão, o escândalo de corrupção na Petrobras durante os governos do PT. São elas: Odebrecht (2,8 milhões), Andrade Gutierrez (1,9 milhão), OAS do Brasil, dos EUA e da Costa Rica (1,9 milhão), Camargo Corrêa (1,4 milhão), Queiroz Galvão (R$ 1,1 milhão), UTC Engenharia (R$ 357 mil) e a Quip (R$ 378 mil), esta última uma sociedade entre quatro empreiteiras que prestavam serviços à Petrobras.
A defesa de Lula afirmou à Justiça que ele fazia retiradas de 25 mil reais mensais da LILS. Odebrecht e OAS ainda customizaram, com todo o conforto, o sítio em Atibaia, frequentado ao menos 111 vezes pelo petista. Atualmente, Lula vem recebendo, por mês, 10.354,12 reais como anistiado aposentado e mais cerca de 22 mil reais como funcionário do PT, que remunera seus integrantes com verba do fundo partidário. Ele recebe, portanto, mais de 32 mil reais oriundos dos impostos pagos pelos brasileiros.
Lula xingou os banqueiros, cobrando que distribuam a riqueza deles, como se ele próprio tivesse distribuído a sua, e não a dos outros, quando o PT estava no poder, ocasião em que os maiores empresários do Brasil, por meio da Petrobras e do BNDES, eram muito mais favorecidos que os pobres e ainda levavam Lula em seus jatinhos.
Além disso, o petista vem intensificando as reuniões a portas fechadas com banqueiros e empresários, enquanto ataca publicamente o setor financeiro brasileiro.
Mas o mundo real pouco importa a populistas de qualquer lado e a suas massas de manobra, até porque os primeiros se aproveitam precisamente do caráter genérico do discurso para eliminar nuances e fatos que comprometam a mobilização desejada.
Bolsonaro, por exemplo, vem construindo a sua categoria de "povo" pelo antagonismo com aqueles que, no STF, nos governos estaduais, na esquerda nacional e estrangeira, alegadamente atacam a família e as nossas liberdades, impedindo os direitos de expressão e de ir e vir, bem como a redução dos impostos sobre combustíveis; querendo a legalização do aborto e das drogas; e tentando se apropriar da Amazônia.
"O que está em jogo neste ano é o bem-estar e a liberdade de cada um de nós. Tenho certeza que, se preciso, tudo faremos para que a nossa Constituição, nossa democracia, e nossa liberdade venham a ser preservadas", disse em Salvador, em 2 de julho.
Pouco importa que o presidente englobe ameaça, incitação à violência e crimes contra a honra em "liberdade de expressão"; que ele confraternize com ministros do Supremo e tenha reforçado a ala do STF que garante a impunidade de políticos; que tenha sabotado e atrasado a vacinação que viria a garantir a circulação de pessoas em maior segurança na pandemia; ou que os assassinatos de Bruno Araújo Pereira e Dom Phillips confirmem que a Amazônia não é nossa, mas dos criminosos. O importante no populismo bolsonarista é mobilizar o "povo" contra quem quer um país "comunista".
"A diferença entre populismo de esquerda ou de direita é sobre intervenção do Estado", disse Bannon naquela entrevista. "Mais intervenção do Estado na economia, nas nossas vidas, leva a um completo fracasso." Segundo ele, "a agenda nacionalista é possível de ser feita sem a intervenção do Estado. Nacionalismo é colocar o seu país primeiro. Nacionalismo não diz que é preciso ter o Estado envolvido nos negócios. No Brasil, especificamente, será uma série de acordos comerciais, de questões de soberania relacionadas à China." Bannon, no entanto, ainda se mostrava receoso em relação a Paulo Guedes, justamente porque ele "veio da Escola de Chicago", associada ao pensamento liberal de Milton Friedman, defendido pela direita não populista.
"O contraponto que Bolsonaro defende, assim como Trump, é: você precisa equilibrar os interesses nacionais versus a pura economia neoliberal, que no primeiro caso se mostrará na infraestrutura no Brasil e como você define quais setores quer privatizar, para quem quer vender. Sempre haverá uma tensão. Você vê a escolha do ministro das Relações Exteriores e do ministro da Economia - é um balanço de como o programa do Bolsonaro é."
O ministro das RE era Ernesto Araújo, considerado um "olavista" da "ala ideológica" do governo, aquela que foi perdendo espaço para o Centrão, quanto mais necessário se tornava para Bolsonaro manter apoio no Congresso para evitar um impeachment. Criticado por parlamentares, incluindo os presidentes das Casas Legislativas, por ter isolado o Brasil no cenário internacional e prejudicado a obtenção de doses de vacina contra a Covid-19, Araújo deixaria o cargo em 29 de março de 2021. "Quando conseguiram me tirar do governo, o Brasil passou a desenvolver uma política complacente. Não tem mais Brasil, aqui é China", diria ele, em abril de 2022.
Com a perda de poder da "ala ideológica", a tensão natural seria entre o ministro da Economia e o Centrão fisiológico de Bolsonaro, mas Guedes, apesar das afetações de contrariedade e até do apelido que deu à "PEC Kamikaze", condescendeu com as intervenções do Estado na economia para reeleger o presidente e manter-se no cargo, tendo abandonado a agenda de privatizações, reformas e contenção de gastos.
O termo "populismo fiscal" - usado para criticar medidas que, sob pretexto de ajudar os excluídos, comprometem o futuro das contas públicas, como a PEC 1/2022 - acaba gerando distorções no conceito de populismo e ofuscando o do clientelismo: a troca, implícita ou não, de bens e serviços por apoio político, ou prática eleitoreira de privilegiar uma clientela (conjunto de indivíduos dependentes) em troca de seus votos.
[* Atualização - no dia seguinte à publicação deste artigo, o Estadão distinguiu e confirmou em editorial "parte da clientela" da vez:
"Ao contrário do que o governo diz, a PEC, destinada na prática a comprar votos para a reeleição do presidente Jair Bolsonaro, cria benefícios sociais para profissionais de classe média, e não para a população carente e desempregada.
O foco da PEC 1/2022, apelidada corretamente de 'PEC do Desespero', tem pouco a ver com os pobres. Ela cria auxílios, por exemplo, para caminhoneiros e taxistas - que, por mais que estejam sofrendo as consequências da crise social e econômica, não fazem parte da população necessitada no Brasil.
Na verdade, caminhoneiros e taxistas só estão na 'PEC do Desespero' porque são supostamente parte da clientela eleitoral de Bolsonaro. Sendo assim, e como o desespero bolsonarista é grande diante das pesquisas de intenção de voto, nada impede que outras categorias profissionais (e eleitores em potencial) entrem no pacote de bondades com dinheiro alheio: o relator da matéria na Câmara, deputado Danilo Forte (União Brasil-CE), quer agora incluir motoristas de aplicativo. Sabe-se lá quem mais será beneficiado até a votação da PEC. Só se sabe que não serão os mais carentes."]
Populistas como Lula e Bolsonaro, porém, reforçam seus discursos de defensores do "povo" contra o "establishment" (ou as "elites", das quais, no mundo real, fazem parte), recorrendo ao clientelismo, sempre turbinado quanto maiores forem o medo de derrota eleitoral e a crise econômica que eles (e eventualmente seus sucessores, como a de Lula, Dilma Rousseff) não conseguiram evitar, nem amortecer de modo menos oportunista.
Em abril de 2010, quando Dilma era a candidata do PT, Bolsonaro escreveu no Twitter que "o Bolsa-farelo (família) vai manter esta turma no Poder". Em 2011, em palestra na UFF, afirmou que "o voto do idiota é comprado com Bolsa Família". Em 2021, no governo, trocou o nome do programa por Auxílio Brasil e, neste ano, patrocinou a proposta de emenda à Constituição que institui estado de emergência até dezembro para burlar a legislação eleitoral e criar benefícios sociais às vésperas da eleição de outubro.
"Eu quero cumprimentar os senadores", comemorou Bolsonaro em 1º de julho, no Nordeste. "Ontem o Senado Federal majorou o valor do Auxílio Brasil de 400 para 600 reais. Também dobrou no dia de ontem o valor do auxílio-gás para todos os brasileiros."
Como comentei na Live UOL daquela sexta-feira: "Bolsonaro considera idiotas esses beneficiários que estão se deixando engambelar pelo governo, que oferece esse tipo de transferência de renda no período eleitoral. É exatamente isto que ele está fazendo agora. E ele está, na prática, chamando essas pessoas de idiotas."
Já Lula, dessa vez na oposição, considerou a PEC "eleitoreira" - omitindo que senadores do PT votaram a favor - e disse em Salvador que os eleitores devem "pegar todo o dinheiro", mas não votar em Bolsonaro:
"O povo baiano está dizendo para ele: 'Bolsonaro, aprove as suas leis, porque a gente vai pegar todo o dinheiro que você mandar, mas a gente não vai votar em você. A gente vai votar em outras pessoas'. Porque o dinheiro que ele está dando agora é só até dezembro."
O que não vai só até dezembro é a eficácia do populismo de esquerda e direita sobre os brasileiros, que se deixam hipnotizar e dividir, afastando-se cada vez mais da realidade.
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