Topo

Felipe Moura Brasil

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A moral conservadora em tempos de Trump e Bolsonaro

Colunista do UOL

18/08/2022 10h03

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

1.

"Reajustar princípios de acordo com interesses de qualquer líder ou grupo político e ideológico é amostra de flexibilidade ou corrupção morais, alheias ao temperamento conservador. Edmund Burke e Joaquim Nabuco, por exemplo, preferiram perder oportunidades de reeleição parlamentar a reajustar os seus."

Escrevi o parágrafo acima no artigo "O futuro conservador", de 4 de dezembro de 2020, que condenava, um mês antes da invasão ao Capitólio, qualquer apoio à conduta adotada por Donald Trump após a derrota eleitoral para Joe Biden. O republicano John Bolton já defendia o repúdio às fantasias trumpistas de "roubo" da eleição, "em vez de esperar até que mentes e memórias sejam endurecidas pela sua logorreia não refutada".

O alerta não adiantou, como mostrei logo após a invasão, e o endurecimento perdura em 2022, como ilustra a derrota de Liz Cheney na primária de 16 de agosto, que decidiu quem se candidatará pelo Partido Republicano à eleição legislativa de novembro.

Mesmo tendo sido condizente com a agenda do ex-presidente em 93% dos votos na Câmara, reeleita duas vezes durante seu governo (em 2018 e 2002) e cotada para a presidência da Casa, a deputada por Wyoming recusou-se a reajustar seus princípios diante da guinada golpista de Trump, tornando-se não só um dos dez nomes da legenda na Casa a votar a favor do impeachment por incitação à violência (ele acabou absolvido no Senado), mas também vice-presidente da comissão que investiga até hoje o episódio.

À postura da filha de Dick Cheney, secretário de Defesa de George W. H. Bush (pai) e vice de George W. Bush (filho), é preciso dar um sentido histórico, além de moral.

2.

Em novembro de 1774, o "pai do conservadorismo moderno", Edmund Burke, foi eleito um dos membros do Parlamento britânico por Bristol.

Na ocasião, conta Russel Kirk em Redescobrindo o gênio, comerciantes e donos de navios da cidade inglesa "advertiram-no, honestamente, de que deveria ser o representante deles", "ignorando a admoestação" do pensador irlandês "de que o Parlamento não é um congresso de embaixadores, mas a assembleia deliberativa de uma nação, interessada no bem geral da nação e não afetada pelas parcialidades locais".

Para Burke, os desejos do eleitorado deveriam ser ponderados pelo seu representante. Em suas próprias palavras: "a opinião imparcial, o julgamento maduro, a consciência esclarecida, ele não deve sacrificar a vós ou a nenhum grupo de homens vivos" e "vos trai em vez de vos servir se sacrifica isso à vossa opinião", porque, "depois que vós o escolhestes, ele já não é um membro de Bristol, mas um membro do Parlamento".

"Se o eleitorado local tem um interesse ou uma opinião precipitada evidentemente oposta ao verdadeiro bem do restante da comunidade, o membro de tal local deve ser tão distante quanto qualquer outro de qualquer tentativa de dar-lhe efeito."

As ideias pré-concebidas de Bristol, porém, eram tão fortes que, em 1777, Burke ficou ciente de ter se tornado impopular entre muitos homens locais, em razão de uma série de medidas que apoiou como parlamentar, com base em seus declarados princípios.

Ao iniciar a campanha de reeleição pela cidade, afirma Kirk, "Burke defendeu sem titubear cada um de seus pontos", sem concessões.

"O discurso no Bristol Guildhall, em 6 de setembro de 1780, em defesa de sua conduta no Parlamento parece, para este escritor que vos fala, o mais comovente e mais persuasivo que Burke jamais proferiu. Os eleitores de Bristol, contudo, movidos por um autointeresse não muito esclarecido, pensaram diferentemente."

No referido discurso, atualíssimo por sinal, Burke criticou - as palavras são dele - "as receitas infalíveis do mundo para gerar impostores e hipócritas" na política.

"Se degradarmos e depravarmos suas mentes pelo servilismo, será absurdo esperar que eles, que nos adulam e desprezam, sejam sempre assertores [defensores] corajosos e incorruptíveis de nossa liberdade contra o mais sedutor e mais formidável de todos os poderes... Nenhum homem levou mais adiante do que eu a política de tornar o governo agradável ao povo. No entanto, o maior alcance dessa complacência política está confinado aos limites da justiça."

Burke disse ainda que jamais "encarnaria o papel do tirano", que desejava "ter parte em fazer o bem e resistir ao mal" e que não trocaria princípios pelas vantagens do cargo.

"Seria, portanto, absurdo renunciar aos meus objetivos para ganhar um assento. Engano-me redondamente caso não prefira passar o resto da minha vida escondido nos recessos da mais profunda das obscuridades, nutrindo a mente com as visões e imaginações de tais coisas, a ser posto no mais esplêndido trono do universo, atormentado pela recusa da prática dos que podem tornar a maior das circunstâncias diferente da maior das maldições. Senhores, já fui mais popular."

Por certo, comenta Kirk, Burke já o fora. "No dia 9 de setembro, ficou claro para ele que Bristol não desejava um membro tão independente como ele para representá-lo; queriam um agente astuto."

O irlandês, porém, deu seu jeito de contornar o problema: recusou-se a concorrer por Bristol, voltou a Londres e conseguiu representar o pequeno distrito de Malton, chamado de "município de bolso" - cadeira que conservou até 1794, três anos antes de sua morte. "Ao final, o habilidoso filósofo político, retórico e arquiteto do partido representou um obscuro distrito seguro", observa Kirk, para quem "o insucesso prático de Burke produziu um manual de sabedoria política" e "intrepidez".

"Bristol rejeitara o homem de talento ardoroso, que pensava primeiro na justiça e na nação e, em segundo lugar, nos eleitores e nos apetites locais. No entanto, as palavras de Burke em Bristol não foram de todo esquecidas na Grã-Bretanha ou na América."

3.

Joaquim Nabuco, o chefe do movimento abolicionista brasileiro, fez parte de uma geração influenciada pelo pensamento burkeano, que ele usava contra a República e a favor do reformismo liberal do Império como modelo de orientação política.

No livro Um estadista no Império, Nabuco qualificou seu pai como "o guia mais seguro dos espíritos positivos, que aliam, como Burke, o liberalismo utilitário e o conservantismo histórico". Em trecho que deveria ser distribuído como vacina literária no Brasil de Jair Bolsonaro e Lula, ou até - guardadas as diferenças - nos EUA de Donald Trump e Joe Biden, o filho defendeu assim o senador José Tomás Nabuco de Araújo:

"Os que o veem indicar o perigo de um lado e logo do lado oposto, julgam-no incoerente, mas é que a estrada corre entre precipícios e que ele olha à direita e à esquerda e não vê os abismos somente de uma margem."

Já Nabuco, o Joaquim, viu na escravidão o maior abismo de seu tempo e não abriu mão da luta pela libertação dos escravos para renovar seu mandato no Parlamento imperial.

Embora costumasse representar Pernambuco, onde nasceu, o pavor da elite escravagista pernambucana diante dos abolicionistas o levou a concorrer e perder a eleição de outubro de 1881 pelo Primeiro Distrito da Corte, então sediada no Rio de Janeiro.

Em carta de 3 de novembro ao Barão de Penedo, ele lamentou a "derrota humilhante":

"Fui derrotado no dia 31 por uma coligação invencível de pequenos sentimentos contra mim. Quando penso nos meios que empreguei para ser eleito, como se me dirigisse a um eleitorado composto por homens de convicção, de ideal e de grandes motivos, suponho que tudo isso foi um sonho. (...)

No meio disso se se realizar o que tanto tempo foi o meu sonho dourado, partirei com uma ferida aberta no coração por ver que o povo brasileiro não é sensível ainda a nenhum ideal - e que a inveja, o ódio, a maldade conspiram contra todos os que se levantam."

Em carta de 8 de novembro a Sancho de Barros Pimentel, Nabuco acrescentou:

"A votação que tive ensinou-me o que tenho a esperar dos meus compatriotas e o ideal do meu país. (...) Decididamente não fui feito para o que chamam entre nós política. A palavra, a pena, as ideias são armas que de nada servem, e ai de quem não tem outras. O caráter, o escrúpulo, a independência, o patriotismo, tudo isso não vale nada, não tem curso entre os eleitores. (...) Triste e infeliz nação - onde a escravidão tem triunfos aos quais todo o mundo se associa com alegria selvagem!"

Na mesma carta, ele falou de seus planos, com a razão que o tempo confirmaria:

"A minha estrela porém não se apagou ainda. A minha única aspiração pessoal, ir viver em Londres, independente, por uma longa série de anos, vai ser realizada em breve. Conto partir no dia 24 deste mês ou, então, no dia 1º do próximo. Dizem que serei o correspondente do Jornal do Commercio. Suponho que é exato. Sem dependência do governo - livre quanto posso sê-lo - viverei feliz e esquecido na sociedade que mais aprecio, na cidade que é o centro político do mundo, com os meus melhores amigos - tu só ausente - no estudo da marcha dos povos e da circulação dos capitais, como ofício, e das letras e artes como distração."

Nabuco, de fato, foi trabalhar em Londres para o jornal brasileiro e, nos momentos livres, escreveu O abolicionismo, retratando o horror da escravidão no Brasil e as mazelas nacionais associadas a ela. Voltou ao país em 1884, quando o livro, publicado no ano anterior, já era famoso, e conseguiu ser eleito deputado por Pernambuco.

Diz um trecho:

"Essa reforma individual, de nós mesmos, de nosso caráter, do nosso patriotismo, no nosso sentimento de responsabilidade cívica, é o único meio de suprimir efetivamente a escravidão da constituição social. A emancipação dos escravos é, portanto, apenas o começo de um Rinnovamento [uma Renovação]."

Considerado em 1976 pelo historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello, organizador da obra de Nabuco, o melhor livro escrito sobre o Brasil no século 19 e o mais importante para a compreensão da formação sociocultural do povo brasileiro até Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, publicado em 1933, O abolicionismo exerceu um peso decisivo na campanha pela abolição, finalmente concretizada em 13 de maio de 1888 com a assinatura da Lei Áurea.

O insucesso prático de Nabuco, portanto, também produziu - neste caso, a tempo - um manual de sabedoria política e intrepidez, fenômeno que se repetiu após a proclamação da República em 1889, quando o monarquista deixou a vida pública para se dedicar à produção intelectual no Rio de Janeiro, escrevendo a biografia do pai, Um estadista no Império, e um livro de memórias, Minha formação, além de ter participado do convívio entre escritores que resultaria na fundação da Academia Brasileira de Letras, em 1897.

4.

Ainda que mais simples, dois discursos de Liz Cheney em 2022 eternizam, também, sua postura de fazer o certo, mesmo sem o benefício dos resultados imediatos.

Em junho, ela disse:

"Sou uma republicana conservadora. Acredito profundamente no governo limitado, nos baixos impostos, na defesa nacional. Acredito na família como centro de nossa comunidade e de nossas vidas. Acredito que essas sejam as políticas certas para nossa nação.

Neste momento, estamos enfrentando uma ameaça interna como jamais tivemos em nossa história. Essa ameaça é um ex-presidente que está tentando destruir os fundamentos de nossa República Constitucional.

Nenhum partido, nenhuma nação consegue defender uma República Constitucional se aceitar um líder que decidiu deflagrar uma guerra contra o império da lei, contra o processo democrático e contra a transição pacífica de poder."

Em 16 de agosto, ao reconhecer a derrota em Wyoming, a deputada declarou:

"Dois anos atrás, venci esta primária com 73% dos votos. Eu poderia ter feito o mesmo facilmente de novo. O caminho estava claro. Mas seria necessário que eu compactuasse com a mentira do presidente Trump sobre as eleições de 2020. Seria necessário que eu endossasse seus esforços contínuos para minar nosso sistema democrático e atacar os fundamentos da nossa República. Esse era um caminho que eu não poderia, nem iria tomar."

A historiadora americana Anne Applebaum comentou o vídeo no Twitter:

"A rigor, esta é uma história perturbadora e até assustadora sobre os eleitores de Wyoming. A verdade é que eles compactuaram com a mentira. E eles preferem um mentiroso a quem fala a verdade e defende a Constituição."

Em artigo de 2012, Thomas Sowell já havia escrito a melhor síntese a esse respeito:

"O fato de tantos políticos bem-sucedidos serem tão desavergonhadamente mentirosos não é só um reflexo deles, é também um reflexo de nós. Quando as pessoas querem o impossível, apenas os mentirosos podem satisfazê-las, e somente em curto prazo."

O trecho era uma variação da máxima que o autor americano já havia escrito em seu livro Riqueza, pobreza e política, publicado em 1985:

"Quem quer ajudar as pessoas diz a verdade para elas. Quando quer se ajudar, diz o que elas querem ouvir."

No Brasil, para qualquer crítico dos governos do PT que quisesse se ajudar - fosse político, empresário, influenciador ou jornalista -, era fácil ganhar dinheiro, visibilidade e poder durante o governo de Jair Bolsonaro. O caminho estava claro.

Bastava compactuar com funcionalismo fantasma, fim da Lava Jato, sabotagem do combate à corrupção e à improbidade administrativa, afrouxamento da legislação penal, instrumentalização de corporações e órgãos de fiscalização e controle, reforço da ala da blindagem e da impunidade nos tribunais superiores, abandono da pauta liberal, distribuição de estatais ao Centrão, escândalos da Codevasf, do MEC e do Meio Ambiente, compra de apoio parlamentar com orçamento secreto bilionário, aumento do fundão eleitoral para R$ 4,9 bilhões, atraso na vacinação e desinformação sobre vacinas durante a pandemia, e, à imitação de Trump, ataques e ameaças ao processo eleitoral.

Em suma: bastava ver o abismo somente na margem esquerda.

Muitos não resistiram à tamanha tentação, variando entre eles e elas apenas o grau de oportunismo e estreiteza mental, considerando-se que ambos tornam mais atraente que as tradições culturais de pensamento e suas manifestações individuais históricas a própria força eleitoral de líderes populistas contemporâneos que as manipulam e delas se apropriam, sobretudo se um deles chegou ao poder nos Estados Unidos, dando legitimidade de primeiro mundo ao populismo de terceiro e à sua claque provinciana.

As portas fechadas para indivíduos de maior grandeza por maiorias movidas por autointeresse e avessas à verdade e à justiça levaram, com frequência, a que cada um deles, em sua época, seja no isolamento físico, no recuo estratégico, ou até no calor dos embates travados, produzisse obras de valor perene e universal que serviram para destravar mentes e memórias, abrindo outras portas, em outras épocas, quando não a tempo de entrarem por elas, usufruindo o legado em suas próprias.

O insucesso prático de Liz Cheney, no caso da eleição local, nem precisa render novos manuais de sabedoria e intrepidez, porque, como vimos, eles já foram escritos.

O que fica - enquanto os oportunistas passam - é a força de seu exemplo.