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Felipe Moura Brasil

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Cintra x urnas: a questão da unanimidade

Colunista do UOL

07/11/2022 19h11

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O conteúdo da sequência de tuítes de Marcos Cintra, que levou Alexandre de Moraes a determinar o bloqueio de sua conta e a coleta do depoimento do ex-secretário da Receita Federal, precisa ser analisado, a despeito de qualquer juízo sobre a decisão do ministro.

Comento abaixo os trechos, para que os fatos não se percam em meio a embates de outra natureza, sobre liberdade de expressão, desinformação, punição legal e censura.

"E as urnas, TSE? Tenho razões para não concordar com Bolsonaro? falta de preparo e de cultura, baixa capacidade de liderança, e comportamento inadequado para presidir um país como o Brasil. Mas as dúvidas que ele levanta sobre as urnas merecem respostas."

Cintra, portanto, cobrou do TSE tais respostas, embora, aqui, convenha analisar, primeiro, a natureza das explicações cobradas.

"Verifiquei os dados do TSE e não vejo explicação para o JB [Jair Bolsonaro] ter zero votos em centenas de urnas."

Em nenhum país do mundo, é atribuição da Justiça Eleitoral explicar a quantidade de votos obtidos por qualquer candidato em determinadas zonas eleitorais.

Essas explicações são destrinchadas por repórteres, comentaristas, marqueteiros e demais especialistas envolvidos na tentativa de compreender a relação entre o histórico dos titulares das chapas e a cabeça dos eleitores de diferentes localidades.

Se Cintra estivesse realmente interessado em compreender fenômenos pontuais, teria pesquisado os números das zonas eleitorais e das seções, procurado entender suas eventuais especificidades, e feito um estudo de cada caso, antes de levantar suspeitas.

Mas o ex-secretário nem sequer procurou as explicações que disse não ver.

Eis o que ele fez:

"Ex. [exemplo:] Roraima, e em São Paulo, como em Franca, Osasco e Guarulhos. Quilombolas e indígenas não explicam esses resultados, sob pena de admitir que comunidades foram manipuladas."

A explicação citada e descartada por Cintra está na seguinte matéria do Globo: "Em 147 seções eleitorais, Lula ou Bolsonaro tiveram todos os votos válidos, apesar da polarização". O jornal explica que Bolsonaro teve zero votos em determinadas aldeias indígenas e comunidades quilombolas, mesmo em estados onde venceu. Por exemplo:

"No Mato Grosso, apesar da vitória de Bolsonaro com 65,08% dos votos, áreas indígenas de Confresa e de outros quatro municípios (Porto Alegre do Norte, Campinápolis, Santa Terezinha e Peixoto de Azevedo) deram 100% dos votos válidos para Lula."

Esses resultados, Cintra não contesta.

Mas, não havendo ocorrência idêntica em Franca, Osasco e Guarulhos, ele levantou suspeitas vagas e truncadas de manipulação, tendo aberto caminho até para a exploração virtual da mentira de que Jair Bolsonaro não teria recebido votos nos três municípios paulistas, quando, na verdade, deixou de receber apenas em alguns locais específicos.

Eu, Felipe, verifiquei exemplos desses locais, como qualquer cidadão pode fazer cruzando os dados do aplicativo Resultados, do TSE, com os da consulta por zona eleitoral, no site do tribunal. Vamos a eles:

- Zona 291, seção 341

Penitenciária de Franca

Lula 14 x 0 Bolsonaro (compareceram 14 dos 22 eleitores aptos);

Haddad 14 x 0 Tarcísio (compareceram 14 dos 22 eleitores aptos).

- Zona 315, seção 336

Centro de Detenção Provisória de Osasco I - ASP [Agente de Segurança Penitenciária] Ederson Vieira de Jesus

Lula 89 x 0 Bolsonaro; 1 voto em branco (compareceram 90 dos 202 eleitores aptos);

Haddad 84 x 0 Tarcísio; 4 votos em branco (compareceram 88 dos 196 eleitores aptos).

- Zona 185, seção 372

Fundação CASA Guarulhos

Lula 10 x 0 Bolsonaro (compareceram 10 dos 63 eleitores aptos);

Haddad 10 x 0 Tarcísio (compareceram 10 dos 63 eleitores aptos).

CASA é a sigla para Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente. Trata-se da antiga FEBEM (Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor).

"O voto do preso provisório e dos adolescentes em unidades de internação foi implantado no Estado de São Paulo nas eleições de 2010" e "está instruído pela Resolução TSE 23.611/2019", como informa o TRE-SP, citando, inclusive, Franca, Osasco e Guarulhos como municípios com seções em estabelecimentos prisionais.

O site do tribunal informa também:

"A Constituição Federal prevê o direito ao voto para o preso sem sentença final, pois somente a condenação criminal definitiva (trânsito em julgado) suspende os seus direitos políticos (CF, art. 15, inciso III). Adolescentes infratores são os internados maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos, submetidos à medida socioeducativa de internação ou à internação provisória, nos termos da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente."

Os bolsonaristas vinham acusando Lula de vencer com folga em estabelecimentos prisionais, mas exploraram os tuítes de Cintra para levantar suspeitas de fraude. Racionalmente, fica complicado explorar as duas narrativas ao mesmo tempo, a menos que a segunda tenha sido bolada, de modo maquiavélico, para legitimar a primeira.

O ex-secretário continuou:

"Há outras centenas, senão milhares de urnas com votações igualmente improváveis."

Essa frase é pura retórica, desprovida de qualquer substância. Lula foi o único candidato a presidente votado em 143 seções. Nessas urnas, como mostrou o G1, ele recebeu 16.455 votos, o equivalente a 0,03% dos 60,3 milhões que garantiram sua vitória - um percentual bem menor que a diferença total de 1,8% entre o petista e Bolsonaro.

"Curiosamente não há uma única urna em todo o país onde o Bolsonaro tenha tido 100% dos votos."

Essa frase é enganosa, porque, em votos válidos, Bolsonaro foi, sim, unanimidade em quatro seções (ou seja: Lula teve zero votos), mas em votos totais, o presidente só foi unânime em duas seções eleitorais situadas fora do país, ambas transferidas de Caracas, na Venezuela, para Bogotá, na Colômbia. Lá, ele conseguiu os seis votos disponíveis, sem que houvesse brancos e nulos.

Nas duas outras seções, situadas em território brasileiro, houve. A rigor, foram dois nulos e um branco em Charrua, no Rio Grande do Sul; e apenas um branco, sem nulos, em Chaves, no Pará.

Em Charrua, curiosamente, conforme o G1, "o fenômeno" dos votos válidos exclusivos "ocorreu para os dois lados. Lula ganhou sozinho na seção 126, com 302 votos. Já na seção 15, Bolsonaro levou todos os 79".

Mas chamo a atenção para o caso do Pará, relatado pelo Globo:

"Num colégio da Ilha Viçosa, no município de Chaves, Bolsonaro conquistou todos os votos válidos. Na foz do Rio Amazonas, o povoado faz parte do arquipélago de Marajó, que desde 2019 aparece em polêmicas geradas pela senadora eleita Damares Alves (Republicanos-DF), ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do atual governo. A última controvérsia foi na corrida eleitoral deste ano, quando ela disse, sem apresentar provas, que crianças de Marajó estariam sendo traficadas para exploração sexual."

Repare que a fake news de Damares, refutada em diversas reportagens, pode ter ajudado a render 100% dos votos para Bolsonaro em uma seção eleitoral. Disso, nem Cintra nem os bolsonaristas falam.

"E se há suspeita em uma única urna, elas recaem sobre todo o sistema."

Na verdade, se há suspeita infundada levantada nas redes contra o processo eleitoral, ela gera um efeito dominó de exploração política aloprada e choro de perdedor.

"Acredito na legitimidade das instituições. Não admito que o TSE seja cúmplice, no caso de descobrirem algum bug no sistema. Mas sim, se tornará cúmplice se não se debruçar sobre esses fatos e esclarecer tudo."

Cintra afirmou que o TSE será cúmplice de "algum bug no sistema" se não se debruçar sobre fatos que ele próprio deixou de apurar por inépcia ou preguiça.

"Independentemente de qualquer outra consideração ou preferência política, a preservação das instituições democráticas exige respostas convincentes."

No caso, isto significa que o TSE deveria torrar ainda mais nosso dinheiro para rebater teorias conspiratórias.

"Caso contrário estarei sendo forçado a reconhecer a validade dos pleitos por voto em papel. Tivéssemos registros em papel, sem prejuízo das vantagens da digitalização dos votos, estes casos aparentemente inexplicáveis poderiam ser rapidamente descartados, evitando as dúvidas sobre a integridade do sistema que estão se avolumando."

Cintra tem todo o direito de defender o voto impresso, mas ele não tem poder algum de evitar a unanimidade de votos onde o eleitorado prefere um candidato a outro.

"São dúvidas legítimas."

Na verdade, são notícias enganosas, suspeitas infundadas e acusações rasteiras, publicadas em rede social, em vez de serem testadas previamente com apurações, diálogos com profissionais especializados, ou ofícios formais à Justiça Eleitoral pelos canais devidos.

"Qualquer cidadão, como eu, tem o dever de exigir esclarecimentos das autoridades competentes para preservar a democracia e a legitimidade de nossas instituições. Quero ardentemente acreditar que haja explicação convincente."

Era só ter procurado antes de sair fazendo insinuações.

Nelson Rodrigues dizia que toda unanimidade é burra - jamais que ela não existia.