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Fernanda Magnotta

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Política externa de Biden promete tensão constante com a China

Colunista do UOL

25/03/2021 04h00

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No fim da semana passada, ocorreu em Anchorage, no Alasca, a primeira reunião oficial entre diplomatas norte-americanos e chineses desde que o governo Biden tomou posse. A delegação dos Estados Unidos foi liderada pelo Secretário de Estado Antony Blinken, e pelo Assessor de Segurança Nacional, Jake Sullivan. Do lado chinês estiveram presentes o chanceler Wang Yi e o experiente diplomata do Partido Comunista, Yang Jiechi.

Desde que os democratas retomaram a presidência, as relações sino-americanas tem sido cercadas de muita expectativa. Isso, em parte, porque Joe Biden sucede Donald Trump, que imprimiu uma política agressiva contra a China. Além disso, as circunstâncias impostas pela pandemia agregam complexidade à já consolidada disputa hegemônica entre os dois países.

O encontro foi marcado por tensões e "conversas diretas e duras", nas palavras do próprio Blinken. Entre as divergências mais significativas estiveram questões ligadas a direitos humanos, mudança climática, cibersegurança e comércio. Temas controversos como Hong Kong, Taiwan e a província chinesa de Xinjiang vieram à tona; o relacionamento com Afeganistão, Irã e Coreia do Norte também.

Ao terem classificado o comportamento internacional da China, alegando que o país "ameaça o sistema de regras existente", os diplomatas norte-americanos ouviram críticas à sua própria democracia, com direito, inclusive, à menção ao movimento Black Lives Matter. Um dia antes da reunião, os Estados Unidos aplicaram sanções a 24 autoridades chinesas devido à repressão contra movimentos pró-democracia, o que também afetou o clima da reunião.

A literatura especializada costuma postular que, ao longo da história, a estratégia dos Estados Unidos para a China pode ser sintetizada por meio do termo "congagement", que expressa a existência de um pêndulo constante que oscila entre momentos de maior contenção e períodos de maior engajamento.

Nos primórdios do relacionamento, os dois países já foram aliados contra o Japão, adversários na Guerra das Coreias e parceiros contra a União Soviética. Da crise da Praça Tiananmen, em 1989, quando as relações bilaterais voltaram a ser congeladas, até a política de "engajamento construtivo", que culminou no US.-China Relations Act of 2000, a partir do qual as relações comerciais puderam ser mais uma vez normalizadas, o relacionamento sempre foi turbulento.

A combinação complexa entre cooperação e conflito também pautou a lógica do século XXI muito antes de Trump, seja na visão de "competidor estratégico" ou na doutrina do "responsible stakeholder", em Bush, ou ainda depois, do "strategic reassurance" ao "pivô para a Ásia" de Obama.

Quando era vice-presidente, por exemplo, Joe Biden disse que não considerava a China como aliada ou adversária dos Estados Unidos. No entanto, na mesma época, ele chegou a fazer afirmações fortes, alegando que, "caso fosse presidente impediria todas as importações da China". Meses mais tarde, recuou na abordagem, declarando que não estaria disposto a impor tarifas sobre produtos chineses porque "ninguém precisa[va] começar uma guerra comercial". Nesse período, disse também que "a única forma de fazer a China se reformar" seria "denunciando internacionalmente suas transgressões em direitos humanos".

O então vice-presidente chegou a dizer que a China desfrutava de privilégios incompreensíveis no trato com os Estados Unidos, pois atitudes análogas vindas de outros países não costumavam ser toleradas com a mesma condescendência por parte do governo norte-americano. Paralelamente, Biden igualmente criticou a política do filho único e a falta de liberdade de expressão na China, além de questionar a sustentabilidade do crescimento chinês.

Sabemos que hoje, no contexto de 2021, há novos elementos que precisam ser levados em consideração e que balizam as possibilidades (ou a falta de) para o trato bilateral. Algumas variáveis deixam claro que Biden deverá manter a linha dura contra a China. Em relação a Trump, variará nas ênfases e no método, mas não em substância ou conteúdo. Tenderá a abordar temas mais complexos do que apenas tarifas e quotas de produtos. Também preferirá pressões coletivas e articulação multilateral.

Os Estados Unidos lidam com mudanças domésticas e precisam reenergizar sua liderança internacional, após um período de desengajamento e ceticismo. A China também enfrenta desafios internos enquanto busca ganhar confiança globalmente: para isso, aposta em projetos grandiosos e em uma inserção via tecnologia e inovação, o que incomoda muito mais os norte-americanos agora do que em outros momentos.

No meio disso tudo, prevalecem, entre os dois países, divergências conceituais em inúmeras matérias e há também uma fragmentação interna nos governos quanto ao tipo de política a ser praticada com o outro. Para completar, triangulações mundo afora vão sendo costuradas para estabelecer blocos de aproximação ou isolamento, conforme a necessidade e conveniência.

No limite, o movimento cíclico que dá sentido ao "congagement" ocorre porque as decisões nessa matéria são sensíveis tanto ao contexto em que o relacionamento se desenvolve e à maneira como essa atmosfera afeta a percepção de ameaça mútua, quanto à configuração, estrutura, interesses e preferências dominantes entre os atores centrais do processo decisório em cada momento, o que faz com que determinada narrativa tenha maior apelo junto às elites e também passe a ser mais conveniente do que outra na mobilização da opinião pública do país. No governo Biden, a narrativa dominante defende a construção da China como um competidor que precisa ser refreado.