Topo

Fernanda Magnotta

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Duradoura, guerra na Ucrânia é o palco da transição hegemônica deste século

Joe Biden e Zelensky em Kiev, na segunda-feira (20); dias seguintes a visita foram de agitação política entre Estados Unidos e Rússia - Evan Vucci/Pool via REUTERS/File Photo
Joe Biden e Zelensky em Kiev, na segunda-feira (20); dias seguintes a visita foram de agitação política entre Estados Unidos e Rússia Imagem: Evan Vucci/Pool via REUTERS/File Photo

Colunista do UOL

24/02/2023 10h12Atualizada em 24/02/2023 16h08

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Neste 24 de fevereiro a invasão da Ucrânia pela Rússia completa um ano. Como já havíamos sinalizado, esse é um conflito cujo fim ainda parece distante e com efeitos que devem perdurar por várias décadas.

Na tentativa de promover um balanço sobre o primeiro ano da guerra, o Belfer Center, da Universidade de Harvard, divulgou um relatório em que aspectos fundamentais do conflito foram contabilizados. Liderada por Graham Allison, importante intelectual das Relações Internacionais e ex-secretário assistente de defesa dos Estados Unidos, o boletim analisa ganhos e perdas territoriais, mortes de combatentes e civis, destruição de infraestrutura e o impacto econômico do conflito no leste europeu.

Ao resumir as conclusões do material, em publicação para a revista Foreign Policy, Allison disse: "no nível do campo de batalha, se alguém conseguir se lembrar de apenas três números, eles são: um quinto, um terço e 40 por cento. Desde a invasão da Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022, as tropas russas tomaram mais 11% do território ucraniano. Quando combinado com as terras confiscadas da anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, isso significa que a Rússia agora controla quase um quinto do país. A economia ucraniana foi esmagada, seu PIB caiu mais de um terço. A Ucrânia agora depende dos Estados Unidos e da Europa Ocidental não apenas para entregas semanais de armas e munições, mas também para subsídios mensais para pagar seus soldados, oficiais e aposentados. Quarenta por cento da infraestrutura de energia da Ucrânia foi destruída ou ocupada".

São números desoladores e que falam por si, de fato. Para além deles, porém, temos enfatizado, desde o início do conflito, a importância de refletir a respeito do que está embutido nessa guerra do ponto de vista estrutural das relações internacionais.

Nesse sentido, independente das questões bilaterais mais evidentes entre Kiev e Moscou, não há outra forma de significar o que acontece na Ucrânia senão reconhecendo que o conflito extrapola, desde o princípio, e cada dia mais, os limites da geopolítica regional. A guerra tornou-se o palco onde se manifestam, clara e vividamente, os sintomas de uma transição hegemônica que está em curso neste século.

Esse é um conceito muito popular entre os estudiosos da política internacional, geralmente aplicado para descrever mudanças de distribuição de poder no sistema, que trazem consigo um reordenamento de interesses e prioridades, culminando em transformações da ordem mundial vigente. Na medida em que se alteram as potências dominantes, por consequência também se alteram as "regras do jogo" na política global.

Desafiar o "status quo" e estabelecer novos pactos em torno de um modelo de liderança diferente é da natureza da política internacional e acontece de tempos em tempos, sem necessariamente respeitar os mesmos fluxos.

Impulsionada pela Revolução Industrial e pelo crescimento econômico dela decorrente, ocorreu, em seus próprios moldes, no século XVIII, da hegemonia espanhola para a hegemonia britânica. Repetiu-se, no século XX, após as Guerras Mundiais, com a transição da hegemonia britânica para a hegemonia norte-americana, dessa vez fortemente pautada pela supremacia militar e pelo exercício de poder via instituições internacionais. Dá sinais de que pode voltar a acontecer entre os Estados Unidos e a China no decorrer do século XXI.

Apesar das particularidades históricas, durante uma transição hegemônica alguns traços comuns costumam prevalecer:

1) o processo não é linear e nem obvio, sendo marcado por "idas e vindas" no discurso e na prática dos atores;
2) os impulsos de transição costumam levar a conflitos e tensões entre as potências em disputa, mas nem sempre a potência estabelecida e a potência em ascensão se enfrentam diretamente;
3) o desejo de alterar o padrão existente é demarcado pela tentativa de deslegitimar a liderança vigente e sugerir mudanças de abordagem no trato das questões globais.

Tudo isso é flagrante aos observadores atentos. Um ano depois da invasão, o que acontece na Ucrânia deflagra, acima de tudo, uma profunda crise entre as superpotências de outrora e as do amanhã. É tanto um "acerto de contas" entre Estados Unidos e Rússia, com marcas remontam ao passado mal resolvido da Guerra Fria, tanto quanto é um sintoma de que há, sim, um processo de contestação da Pax Americana pela China, cujo papel nos rumos da estabilidade internacional nunca foi tão importante.