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Jamil Chade

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REPORTAGEM

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Plano de paz de Lula é tido como improvável em conversas sigilosas na ONU

10.fev.2023 - Os presidentes dos EUA, Joe Biden, e do Brasil, Lula, durante encontro na Casa Branca, em Washington - Divulgação
10.fev.2023 - Os presidentes dos EUA, Joe Biden, e do Brasil, Lula, durante encontro na Casa Branca, em Washington Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

28/02/2023 04h00

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A proposta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de criar um grupo de mediadores para buscar uma saída para a guerra na Ucrânia é vista como uma possibilidade distante e ainda improvável de acontecer, pelo menos no curto prazo.

Se em declarações públicas, governos de ambos os lados do conflito insistem que querem a paz e que estão dispostos a falar sobre projetos, como o do Planalto, a realidade em salas fechadas e longe da imprensa é que tal iniciativa não está sendo considerada como realista. O obstáculo não seria o Brasil. Mas a ausência de uma real vontade política das partes envolvidas no conflito para abandonar a via militar.

O UOL teve acesso exclusivo aos bastidores de reuniões na ONU e a troca de impressões entre alguns dos principais chefes da diplomacia internacional. A constatação é de que nem ucranianos e nem russos querem, hoje, uma mediação para o conflito.

Lula, desde que assumiu o governo, vem tratando com líderes estrangeiros a possibilidade da criação de um grupo de países que possam dialogar e buscar um caminho para um eventual cessar-fogo.

Mas o tom nos corredores das Nações Unidas e nas chancelarias em diferentes capitais do mundo é de pessimismo e uma narrativa ainda bélica que toma conta da tomada de posições por parte dos principais interlocutores. Não se descarta que, eventualmente, o projeto brasileiro possa ser retomado. Mas o momento não teria ainda chegado e que negociadores admitem que não existem condições políticas para que o plano se consolide.

Fontes próximas ao processo negociador, de fato, relataram ao UOL que existe um fracasso até mesmo da ONU para oferecer seus bons ofícios por um acordo. Dois motivos são considerados fundamentais para esse impasse:

  • Não existe nenhum pedido por parte de Kiev ou por parte de Moscou para que uma mediação seja realizada.
  • Ambos ainda acreditam que podem vencer militarmente o conflito.

Para esses negociadores, portanto, o projeto de Lula "não é para agora". A sugestão é de que o Brasil reavalie e, primeiro, costure com outros países as bases do que poderia ser esse grupo.

"Por enquanto, nem russos e nem ucranianos querem negociar e acreditam, cada um deles, que podem vencer a guerra no campo de batalha", relatou um dos principais negociadores da ONU.

Do lado ucraniano, há um otimismo diante das novas armas de nova tecnologia que o país tem recebido. Kiev acredita que pode minar a confiança dos russos e até restabelecer territórios que tinham sido anexados.

De outro, os russos estariam confiando na dimensão de sua economia para resistir às sanções, no fôlego de uma sociedade acostumada com períodos de dificuldade e com seu gigantismo. A vitória, portanto, viria com "paciência" e o "desgaste" da aliança ocidental, já que as economias europeias e de outros partes do mundo poderiam começar a sofrer diante das sanções contra o setor de energia.

País neutro, mas armado

De acordo com relatos internos na ONU, já houve um esforço nos bastidores para oferecer uma mediação, o que não foi aceito nem em Kiev e nem em Moscou.

A base do projeto previa:

  • Transformar a Ucrânia num país armado, mas neutro. Ou seja, Kiev poderia ter seu exército, mas sem formar parte da OTAN.
  • A região de Donbass permaneceria na Ucrânia, mas um grau mais elevado de autonomia seria garantido.
  • Um congelamento da crise na Crimeia, anexada por Moscou em 2014. Ou seja, não haveria um reconhecimento internacional de que a região passa a fazer parte da Rússia. Mas não haveria um questionamento sobre o fato de que, na prática, a região está controlada e administrada por Moscou.

2023: "ano dramático"

Mas nada disso prosperou, frustrando os esforços nos bastidores por parte de Antonio Guterres, secretário-geral da entidade, por um entendimento.

Sem uma perspectiva de cessar-fogo, a análise interna na ONU é de que 2023 será um "ano dramático". A própria cúpula da entidade admite não haver espaço hoje para que ela atue como mediadora e toda a inteligência coletada aponta para um risco real de uma "guerra longa".

Os negociadores acreditavam que os russos poderiam ter lançado uma nova ofensiva terrestre sobre a Ucrânia desde janeiro. Mas optaram por esperar até a primavera. Ao mesmo tempo, as fotos de satélites usadas pela ONU revelam que os russos montaram uma ampla proteção de seus territórios conquistados no sul, o que significa que a retomada por parte de Kiev dessas regiões não será fácil.

Nos bastidores, a entidade admite que tal cenário, se confirmado, terá um "impacto devastador para a economia global".

Impasse até em acordos pontuais

Se não existe uma brecha para um cessar-fogo, a esperança dos negociadores é de que Kiev e Moscou aceitem pelo menos tratar de questões pontuais, mas que podem ser fundamentais para aliviar a pressão internacional.

O pacote envolveria três partes:

1. A renovação do acordo do Mar Negro, que permite a exportação de grãos por parte da Ucrânia e o abastecimento de programas de combate à fome no mundo. Segundo os diplomatas, o governo russo deu sinais de que poderá dificultar a renovação do tratado, que está por vencer.

Hoje, graças ao entendimento, a Ucrânia consegue exportar em média 3 milhões de toneladas de grãos por meses, ainda que bem abaixo do potencial de venda de 7 milhões de toneladas.

A ONU esperava convencer os russos a permitir o aumento das exportações. Mas, para isso, Moscou precisaria fornecer um número maior de inspetores para atuar em cada uma das embarcações e liberar as cargas.

O problema é que os russos colocaram uma nova condição: qualquer aumento nas exportações de grãos da Ucrânia teria de ser acompanhada por uma autorização para a Rússia também exportar amônia, algo que as potências ocidentais se recusam a aceitar.

A ONU sugeriu que, para superar o impasse, o comércio de amônia fosse realizada a partir de uma terceira parte. Mas o projeto não decolou.

2. Usina nuclear - O segundo ponto da proposta da ONU é de que haja um entendimento de uma desmilitarização da região da usina nuclear de Zaporizhzhia. Ou seja: a região não poderia ser atacada e nem local de onde disparos seriam realizados.

Hoje, sob o controle dos russos, o entendimento iria prever que a energia gerada abasteceria as cidades ucranianas. Mas Kiev se recusou e quer retomar o controle sobre sua usina.

3. Troca de prisioneiros - Para completar o pacote de mediação oferecido pela ONU, Kiev e Moscou teriam de chegar a um entendimento para a troca de prisioneiros. Mas, uma vez mais, não houve entendimento. Um dos problemas é o desequilíbrio entre os dois lados: os russos mantém cerca de 7 mil soldados ucranianos detidos, contra apenas mil russos nas mãos de Kiev.

Outro obstáculo é o fato de que, do lado dos ucranianos, o governo quer vincular qualquer ação nesse setor em acordos sobre a exportação de grãos.

Não se descarta que a proposta chinesa apresentada nos últimos dias para o conflito possa indicar alguns pontos de interesse, como o alerta duro feito por Pequim para Moscou que não há como pensar no uso de armas nucleares. Do outro lado, o plano de paz dos ucranianos é visto mais como uma imposição de seus desejos que, de fato, uma base para negociar uma solução.

Mas sem um acordo sobre esses pontos, sem um projeto de cessar-fogo e sem indicações de ambas as partes e de seus aliados de que há um espaço para uma negociação, a cúpula da ONU não disfarça seu profundo pessimismo com o cenário para o mundo em 2023.