Lafer, ex-chanceler, critica apoio do Brasil à queixa de genocídio em Gaza
O ex-chanceler, Celso Lafer, questionou a decisão do Brasil de dar seu apoio à denúncia da África do Sul na Corte Internacional de Justiça contra Israel. Os sul-africanos acusam o governo de Benjamin Netanyahu de estar promovendo um genocídio em Gaza.
Na quarta-feira, um dia antes de o processo começar no tribunal em Haia, o governo Lula emitiu uma nota na qual defende a denúncia. O presidente já havia usado o termo "genocídio" para se referir às ações israelenses.
A Convenção sobre Genocídio, de 1948, permite que qualquer governo que faça parte do pacto acione a corte em Haia contra outro governo, mesmo que não tenha nenhuma ligação direta com o conflito em questão.
Mas numa carta obtida pela coluna e enviada por Lafer para o atual chanceler, Mauro Vieira, o ex-chefe da diplomacia brasileira nos anos de Fernando Henrique Cardoso explicou seu questionamento à decisão do Itamaraty.
"A Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime do Genocídio de 1948, promulgada no Brasil, configura a intenção de destruir, em todo ou em parte, um grupo nacional como um ingrediente constitutivo do tipo penal", disse Lafer.
Para ele, "não se configura a mens rea do tipo penal de genocídio na condução das atividades bélicas de Israel na faixa de Gaza".
"Estas atividades configuram uma reação à agressão ao território de Israel, conduzida de forma indiscriminada pelo Hamas, que domina politicamente a faixa de Gaza", afirmou.
Lafer foi chanceler em duas ocasiões (1992 e 2001-2003). Foi o fundador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI) e ocupou o cargo de Ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (1999).
Entre 1995 e 1998, foi o embaixador do Brasil na ONU e na OMC em Genebra, onde foi presidente do Órgão de Solução de Controvérsias. Foi também membro do Conselho Executivo da ONU em assuntos relacionados ao desarmamento, indústria e comércio e é professor emérito da USP.
É um deslize conceitual de má-fé valer-se da imputação de genocídio para discutir as controvérsias jurídicas relacionadas à aplicação do direito humanitário e aos problemas da situação humanitária prevalecente em Gaza - que são graves problemas, de generalizada preocupação
Ex-ministro Celso Lafer
Para ele, há uma "instrumentalização do direito internacional". "Tem como propósito, mediante a invocação do genocídio, contribuir para a deslegitimação do Estado de Israel no plano internacional", disse. "Reforça o antissemitismo. Está em discutível sintonia com os que almejam minar o direito à existência de Israel, que é uma explícita intenção da estratégia e da conduta do Hamas, de seus apoiadores e simpatizantes", alertou.
Lafer lembrou que, quando chanceler, uma de suas preocupações foi a de "zelar pela consistência da política jurídica exterior do Brasil". "É um ingrediente configurador do nosso lugar no mundo e, como tal, um componente do processo decisório da política externa", disse.
O apoio à iniciativa da África do Sul "não atende aos requisitos de consistência e coerência da política jurídica externa do Brasil" e "não é meio hábil para a discussão dos desafios do jus in bello, com os quais, validamente, se preocupa o nosso país".
Para ele, o apoio brasileiro "respalda a instrumentalização do Direito Internacional", "não obedece ao rigor das regras do Direito e "não acrescentará credibilidade ao Brasil nas múltiplas instâncias da vida internacional".
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JAMIL CHADE
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O que diz a denúncia em Haia
No final de 2023, o principal órgão judicial das Nações Unidas foi acionado diante das "supostas violações por parte de Israel de suas obrigações segundo a Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio em relação aos palestinos na Faixa de Gaza".
Há um mal-estar entre uma parcela da comunidade internacional que lembra que, semanas depois a invasão russa sobre a Ucrânia, o mesmo tribunal abriu um processo e determinou medidas provisórias contra Moscou.
O Tribunal Penal Internacional (ICC), que também fica em Haia, já está investigando possíveis crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos tanto pelo Hamas quanto por Israel. Mas sem qualquer ação, até o momento. O silêncio das cortes internacionais diante da morte de milhares de pessoas em Gaza, portanto, tem sido alvo de críticas.
Agora, de acordo com o requerimento sul-africano, "os atos e omissões de Israel têm caráter genocida, pois foram cometidos com a intenção específica necessária para destruir os palestinos em Gaza como parte do grupo nacional, racial e étnico palestino mais amplo".
O documento ainda afirma que "a conduta de Israel - por meio de seus órgãos estatais, agentes estatais e outras pessoas e entidades que agem sob suas instruções ou sob sua direção, controle ou influência - em relação aos palestinos em Gaza, viola suas obrigações nos termos da Convenção sobre Genocídio".
Os sul-africanos ainda afirmam que "Israel, desde 7 de outubro de 2023 em particular, não conseguiu evitar o genocídio e não processou o incitamento direto e público ao genocídio" e que "Israel se envolveu, está se envolvendo e corre o risco de se envolver ainda mais em atos genocidas contra o povo palestino em Gaza".
A África do Sul busca fundamentar a jurisdição da Corte no Artigo 36, parágrafo 1, do Estatuto da Corte e no Artigo IX da Convenção sobre Genocídio, da qual tanto a África do Sul quanto Israel são partes.
Se um processo pode levar anos para ser concluído, o governo da África do Sul quer ainda que Haia estabeleça medidas provisórias para frear a guerra.
Essas medidas iriam "proteger contra danos adicionais, graves e irreparáveis aos direitos do povo palestino nos termos da Convenção sobre Genocídio" e "para garantir o cumprimento por Israel de suas obrigações nos termos da Convenção sobre Genocídio de não se envolver em genocídio e de prevenir e punir o genocídio".
Israel rejeita acusação
O governo de Israel criticou a decisão do presidente Cyril Ramaphosa e pediu que a corte rejeite o pedido. "Israel rejeita com repulsa a libelo de sangue espalhada pela África do Sul em seu pedido à corte internacional de justiça", disse Lior Haiat, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores de Israel.
"A alegação da África do Sul carece de base factual e legal e constitui uma exploração desprezível e desdenhosa do tribunal", denunciou. Para ele, "a África do Sul está cooperando com uma organização terrorista que pede a destruição do Estado de Israel".
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