Kamala tenta recuperar 'liberdade', termo sequestrado pela extrema direita
Em inglês, húngaro, espanhol, alemão ou português, o termo "liberdade" passou a ser uma espécie de refrão de movimentos de extrema direita no mundo. Um slogan capaz de mobilizar milhões de pessoas numa suposta luta contra o "totalitarismo" que se estabeleceu em sociedades ocidentais.
Poderosa, a palavra não fica de fora de um só discurso de bolsonaristas, trumpistas ou de movimentos radicais da Europa.
Agora, porém, a campanha de Kamala Harris deixa claro que entrou na briga por acabar com o sequestro do termo e reivindicar que ele seja usado pelos democratas. Prova dessa intenção é a escolha de sua trilha sonora para suas entradas em palcos e comícios, baseada na canção "Freedom (Liberdade)", um hino de contestação de Beyoncé.
Se nos últimos anos a extrema direita sequestrou o termo, ela também promoveu uma manipulação de seu significado. Durante a pandemia da covid-19, a palavra foi instrumentalizada para dar ímpeto e legitimidade ao cidadão que se recusasse a usar máscara, a se vacinar ou a romper o lockdown.
Em 2023, o bilionário Elon Musk colocou nas redes sociais uma foto de um boné com a frase "Make Orwell Fiction Again" (Faça Orwell ser Ficção de novo), numa alusão ao lema de campanha de Donald Trump, Make America Great Again.
Tratava-se de uma convocação para que fosse colocado um fim às realidades distópicas retratadas nas obras do escritor George Orwell. Nelas, são denunciados os avanços do autoritarismo, a vigilância governamental e a erosão gradual das liberdades civis na sociedade contemporânea.
Em seu livro "1984", por exemplo, Orwell traça os contornos do que seria um regime totalitário, capaz de controlar o cidadão pela propaganda, desinformação e vigilância.
Manipulando o sentido que Orwell queria dar, Musk e a extrema direita passaram a comparar os atuais governos ocidentais e democrático com a opressão descrita pelo autor. Eles, portanto, estaria "libertando" a sociedade da opressão.
A suposta luta pela liberdade também passou a ser uma bandeira da extrema direita, ao defender que todos possam dizer o que bem entender, sem limites. Nenhum tratado internacional define liberdade de expressão dessa forma. Mas o debate passou a alimentar as narrativas de grupos radicais, acusados de querer essa liberdade para poder disseminar desinformação e ódio.
Para esses grupos, existe um "complexo industrial de censura" por parte das elites e organizações "globalistas que estaria ameaçando a "liberdade" do cidadão comum de dizer o que ele pensa.
Recentemente, a chegada aos cinemas de um filme apoiado pelas alas mais conservadoras também ampliou a guerra cultural pela definição do termo. "Sound of Freedom (Som da Liberdade" conta a história de um ex-agente federal que resgata crianças da exploração.
A produção cristã virou um sucesso de bilheteria nos EUA. Mas passou a ser denunciado por difundir teorias de conspiração. Pouco importa para Donald Trump, que chegou a organizar um lançamento do filme na Flórida.
Denunciados por alimentar a desinformação, o grupo de extrema direita QAnon também abraçou o filme como peça de sua campanha de promoção de mentiras e teorias conspiratórias. Uma das narrativas preferidas do movimento é a de denunciar um suposto esquema mantido por elites de todo o mundo para sequestrar, abusar e matar crianças. Delas seriam retiradas uma substância que seria usada como um alucinógeno "dez vezes mais poderoso" que a heroína.
Não é de hoje que os democratas cederam o uso do termo aos republicanos. Nos anos 80, Ronald Reagan transformou a palavra numa plataforma contra a União Soviética, numa defesa da liberdade de mercado e da redução do papel do estado.
Mas a radicalização dos republicanos ampliou esse sentimento de perda por parte do campo democrata.
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receberHarris tenta redefinir o conceito
Pelos próximos dois meses e meio, a campanha de Harris fará uma ofensiva para resgatar o lema que já foi central no passado para o partido.
A Convenção Democrata explicitou isso, com direito a uma explicação detalhada por parte do candidato à vice-presidente, Tim Walz: "Liberdade. Quando os republicanos usam a palavra liberdade, eles querem dizer que o governo deve ser livre para invadir o consultório de seu médico. As empresas devem ser livres para poluir seu ar e sua água. E os bancos devem ser livres para tirar vantagem dos clientes", disse.
Mas quando nós, democratas, falamos de liberdade, queremos dizer a liberdade de ter uma vida melhor para você e para as pessoas que você ama. Liberdade para tomar suas próprias decisões sobre cuidados com a saúde. E, sim, a liberdade de seus filhos irem à escola sem se preocuparem com a possibilidade de serem mortos a tiros no corredor. Tim Walz, candidato a vice
A redefinição ainda contou com cartazes espalhados pelo público em Chicago, além de um vídeo mostrando cenas de liberdade, entre eles o desembarque de soldados americanos durante a Segunda Guerra Mundial para libertar a Europa, os movimentos pelos direitos civis nos EUA e Black Lives Matter. O narrador do vídeo ainda reivindicava aos democratas o papel daqueles que mais "amam a liberdade" e "lutam por ela".
Tampouco foi por acaso que, em seu discurso na Convenção Democrata, Harris tenha insistido sobre a questão do aborto. A mensagem ia muito além da situação da mulher. Tratava-se de um recado sobre o que pode ocorrer quando o estado coloca em risco a liberdade de escolha das mulheres em todo o país.
Sua campanha fez questão de ecoar o debate para além, alertando sobre o que significaria um novo governo Trump para as liberdades fundamentais.
Não por acaso, Harris também insistiu que a hora chegou de disputar com Trump a propriedade sobre o termo. Em Las Vegas, num outro comício, ela alertou: "Se Donald Trump quer brigar por nossas liberdades mais fundamentais, nós dizemos: Vamos lá. Porque estamos prontos".
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