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Jeferson Tenório

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que a ostentação dos jogadores com a 'carne de ouro' incomoda?

Jeferson Tenório

Colunista do UOL

05/12/2022 04h00

Numa pesquisa rápida é possível constatar que a relação do ouro com a comida vem de longe. Há 5 mil anos, por exemplo, os egípcios ingeriam ouro porque acreditavam que o metal tinha algum poder de purificação do corpo e da mente. Ao longo dos séculos, o ouro passou a ser sinônimo de riqueza, de mérito (no caso das medalhas olímpicas), ou em demonstrações de importância nas relações afetivas, nos casos das joias.

Obviamente que as cenas protagonizadas pelo ex-jogador Ronaldo e pelo jogador da seleção brasileira atual Vinicius Junior no Qatar são de uma grosseria e de uma insensibilidade tamanha. Pois a associação com a trágica situação brasileira, que voltou ao mapa da fome graças à incompetência e a má gestão do governo Bolsonaro, é direta. Afinal, temos mais de 30 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave pelo país.

Ronaldo é ainda uma figura pública e histórica para o esporte brasileiro, e a imagem dele consumindo carne de ouro, numa churrascaria famosa, em plena Copa do Mundo, soa como um deboche, além de ser cafona. A fusão desses dois elementos: ouro e carne produz um imaginário de ostentação e de riqueza que agridem os olhos de quem tem algum discernimento da realidade brasileira. Pode ser também, que num momento de euforia e de descontração os jogadores, seduzidos por uma "brincadeira" de 9 mil reais, tenham se deixado levar, e que talvez nem tenham pago para provar a tal iguaria.

Por outro lado, não esqueçamos que a ostentação passou a ser um valor social. Em tempos de redes digitais, ninguém escapa do canto da sereia: fotos de viagens, o vinho que se toma, a festa que está curtindo, o carro que comprou, as fotos do casamento, do aniversário dos filhos, tudo passa a ser uma moeda de troca e que tem mais a ver com o acúmulo narcísico, do que com o acúmulo de capital. Ou seja, mostrar ao outro o que se conquista faz parte do pacote do consumo. Porque, vejam, não basta apenas consumir, é preciso mostrar que você pode consumir. Sem esse recibo, o consumo não se completa. Consumir é também provocar o desejo no outro. É assim que o capitalismo se sustenta.

A distinção social, e que passa pela ostentação, é necessária para que o desejo do consumo permaneça aceso. Para quem vem de classes menos abastadas, ascender socialmente ganha uma outra dimensão. A negação e a interdição a determinados produtos pelo sistema capitalista criam nesse sujeito uma ideia de reparação social voltada para o consumo. Isso se confirma numa passada rápida nas imagens dos jogadores da seleção usando tênis muito mais caros que a famigerada carne de ouro, por exemplo.

Podemos ainda fazer o recorte racial no caso de Ronaldo e de Vinicius Junior, pois fico pensando que efeito a imagem de dois jogadores negros consumindo uma carne de ouro, no Qatar, produz em nosso imaginário. Será que o mesmo aconteceria com homens brancos bem-sucedidos? O que significa esta ostentação a partir de corpos negros que são vistos, na maioria das vezes, em situação de pobreza e de subalternidade? Por que pegamos pesado quando pessoas negras ostentam aquilo que convencionamos como um valor social? Mais ainda, quem tem direito à ostentação sem ser condenado pelo tribunal das redes sociais? Não tenho a resposta, mas ficam as perguntas para refletirmos.

A questão que se impõe é como escapar dessas armadilhas do capitalismo que associam o consumo a um estilo de vida. Pois consumir passou a ser um modo de viver. Um modo de vida que associa nossa condição de consumidor à condição existencial. Fomos reduzidos ao ato de comprar e mostrar que comprou. Comer a carne de ouro, e mostrar que comeu. Assim, não interessa que o ouro não vá acrescentar sabor algum à carne, mas interessa esse fetiche capitalista de engolir a riqueza.

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