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Josias de Souza

E se um filho de Bolsonaro estivesse lá na China?

Colunista do UOL

02/02/2020 04h28

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O coronavírus produz um desses episódios que fazem com que o contribuinte tenha vergonha do serviço público que sustenta. Há na China brasileiros que desejam retornar ao seu país. Coisa de três dezenas de pessoas. O desejo desse grupo é tratado pelas autoridades de Brasília com a sensibilidade de um cubo de gelo.

Num instante em que outros países resgatam seus cidadãos do confinamento chinês, Jair Bolsonaro e sua equipe entoam um lero-lero glacial. A turma oscila entre o desrespeito e a crueldade.

O blá-blá-blá soa desrespeitoso quando Bolsonaro declara não dispor de verba para recambiar poucas dezenas de nativos. "Se você me arranjar recursos e meios a gente começa a providenciar a partir de agora", disse ele, irritado, a um repórter.

O palavrório se torna cruel quando o risco de contágio serve de pretexto para justificar o abandono: "Se lá temos algumas dezenas de vidas, aqui temos 210 milhões de brasileiros."

Bolsonaro falou sobre o problema como se aguardasse por uma solução caída do céu. Primeiro, empilhou as dificuldades: da falta de aval do Congresso para realizar a despesa até a ausência de lei para impor uma quarentena aos resgatados.

Recordou-se ao presidente que para casos assim, urgentes e relevantes, a Constituição dá ao inquilino do Planalto o poder de editar medidas provisórias.

O capitão não se deu por achado: "Vamos discutir isso daí, porque pode a MP chegar lá e simplesmente alguém julgá-la inconstitucional, numa ação judicial. Vocês sabem que nosso Judiciário é bastante rápido nessas questões."

Infectados pelo descaso do chefe, os ministros ecoaram Bolsonaro. "Não temos voo direto", declarou Henrique Mandetta, da Saúde. "Sai da China e faz conexão. Paris, Frankfurt..." Bolsonaro reforçou: "Temos que negociar essas escalas também".

Puxado por Bolsonaro, o chanceler Ernesto Araújo expressou-se como se desejasse confirmar a superstição segundo a qual diplomatas detestam os patrícios que lhes pagam o contracheque:

"A região da China que está mais sujeita [à proliferação do coronavírus] está fechada para qualquer pessoa sair. É preciso negociar com o governo chinês primeiro para que deixe sair os brasileiros, como outros países fizeram. Não é uma coisa óbvia e imediata."

Enquanto o linguajar de Araújo rodopia como parafuso espanado, outros países agem. Na terça-feira (28), um avião enviado pelos Estados Unidos resgatou 195 americanos na província de Hubei, onde fica a cidade chinesa de Wuhan, epicentro do surto de coronavírus.

Na quarta (29), o Japão levou embora 206 cidadãos, dos quais cinco tiveram que ser isolados porque tinham febre. Equipavam-se para resgatar seus nacionais na China: Alemanha, França, Coréia do Sul, Marrocos, Cazaquistão, Canadá, Rússia, Holanda, Mianmar, Austrália...

No início da semana, ao retornar da Índia, Bolsonaro já havia sinalizado que trataria com desapreço os nacionais em apuros no oriente. "Pelo que parece, tem uma família na região onde o vírus está atuando. Não seria oportuno retirar de lá, com todo o respeito. É o contrário. Não vamos colocar em risco nós aqui por uma família apenas."

O presidente se referia "apenas" ao drama de um casal brasileiro que amargava um isolamento hospitalar nas Filipinas porque a filha de dez anos apresentava os sintomas do coronavírus. O contágio da garota não se confirmou. Mas o surto de insensibilidade de Bolsonaro dispensa exames laboratoriais.

No ano passado, quando cogitou indicar o filho Eduardo Bolsonaro para o posto de embaixador do Brasil em Washington, o capitão deixou claro que não mede esforços para favorecer seus rebentos. "Pretendo beneficiar filho meu, sim. Pretendo! Se puder dar filé mignon, eu dou."

Cabe perguntar: o que faria Bolsonaro se "apenas" um filho seu estivesse confinado num hospital filipino ou na cidade chinesa de Wuhan? Decerto já teria providenciado o resgate, com jato da Força Aérea Brasileira.