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Josias de Souza

Capitão propõe um dilema: impeachment ou morte?

Colunista do UOL

25/03/2020 02h10

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Há vários tipos de coragem. Muitos são admiráveis. Entretanto, o modelo adotado por Jair Bolsonaro, aproxima-se da patologia. Antes do coronavírus, a bravura do presidente era apenas um impulso autodestrutivo. Depois da pandemia, passou a ser uma moléstia que favorece o extermínio.

Com sua nova aparição em rede nacional de rádio e TV, Bolsonaro levou o instinto homicida às fronteiras do paroxismo. Assassinou o bom senso. E pode colocar em risco a vida de pessoas que, eventualmente, decidam dar ouvidos à insensatez daquele que se nega a exibir comportamento digno da autoridade máxima da República.

Na contramão das recomendações de cientistas, autoridades sanitárias e entidades de saúde de todo o mundo, Bolsonaro contestou a necessidade de isolamento social. Fez isso sem apresentar nada que se parecesse com uma, digamos, evidência científica.

Escorando-se apenas num achismo incompatível com a proliferação do coronavírus no Brasil e com os cadáveres que a pandemia produz em escala planetária, o suposto presidente da República amaldiçoou o recolhimento domiciliar dos brasileiros. "Devemos voltar à normalidade", declarou. Faltou definir normalidade.

O ministro da Saúde, Henrique Mandetta, já esclareceu que, no caso brasileiro, a anormalidade ainda nem começou. "Em final de abril, nosso sistema [de saúde] entra em colapso", disse o doutor, antes de definir colapso: "É quando você pode ter o dinheiro, o plano de saúde, a ordem judicial, mas simplesmente não há o sistema para você entrar."

Bolsonaro acusou a imprensa de "espalhar a sensação de pavor". Horas antes de comandar uma reunião virtual com governadores do Sudeste, distribuiu caneladas: "Autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, como proibição de transporte, fechamento de comércio e confinamento em massa."

Guiando-se por uma lógica alobrógica, Bolsonaro partiu de uma constatação técnica —"...O grupo de risco é o das pessoas acima dos 60 anos"— e chegou a uma indagação estúpida —"Então, por que fechar escolas?".

O doutor Mandetta talvez precise explicar ao chefe que a criançada, embora morra menos, infecta-se com facilidade e pode ser utilizada pelo vírus como usina da transmissão.

Veja o que Bolsonaro já disse sobre coronavírus

TV Folha

Para Bolsonaro, o pensamento lógico —"90% de nós não teremos qualquer manifestação, caso se contamine"— conduz a uma inteligência mais profunda, inalcançável para os cérebros normais —"Devemos, sim, é ter extrema preocupação em não transmitir o vírus para os outros."

Se achar que ainda vale a pena, o doutor Mandetta pode desperdiçar um naco do seu tempo para explicar ao hipotético presidente de uma inquieta República o seguinte: o confinamento que ele tanto abomina serve justamente para inibir a transmissão do vírus que ele já classificou de "fantasia".

Para Bolsonaro, o vírus "brevemente passará." Avalia que é preciso cuidar imediatamente da saúde da economia. "Nossa vida tem que continuar", declarou. "Os empregos devem ser mantidos. O sustento das famílias deve ser preservado."

O presidente presumido ainda não se deu conta, mas o mundo concluiu que, depois do coronavírus, o pesadelo tornou-se melhor do que o despertar. Todos estão inquietos com o tombo da economia. Porém, é melhor arrostar um prejuízo econômico monumental do que elevar ainda mais o número de covas.

Bolsonaro sugere uma falsa opção. É como se dissesse, com outras palavras, algo assim: "Se interrompermos imediatamente o confinamento, reabrindo as escolas e o comércio, a eventual elevação do número de mortos será compensada pelo desempenho do PIB." O raciocínio embute uma dose letal de desumanidade.

O inquilino do Planalto fez aniversário de 65 anos no último sábado. Pertence, portanto, ao grupo de risco. Cercado de contaminados, diz estar isento de infecção. Nega-se a exibir os exames. Considera a própria medicina dispensável no seu caso.

"No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho..."

Ao menosprezar o coronavírus, seu primeiro opositor real desde a posse, super-Bolsonaro abusa da sorte. Admitindo-se que a saúde do capitão seja de aço, seu comportamento representa um flerte com a morte política.

Em tempos de confinamento, as ruas estão vazias. Mas os panelaços soam diariamente para relembrar que a legitimidade nascida das urnas não é imortal. A história mostra que, em política, a morte é anterior a si mesma. Começa muito antes de acontecer. O sujeito às vezes já começou a morrer e não sabe.

Antes do pronunciamento de Bolsonaro não parecia haver no Congresso ambiente propício à sua deposição. Mas o presidente, com sua aparição em rede nacional, revelou-se um vivo tão pouco preocupado com a vitalidade de sua Presidência que muitos congressistas sentiram-se estimulados a lhe enviar coroas de flores.

Ao insinuar que a economia está acima da vida dos cidadãos que deveria proteger, Bolsonaro propõe ao país um dilema novo: Impeachment ou morte? Se a última pá de cal for inevitável, melhor jogá-la sobre o mandato do presidente do que em cima dos brasileiros.