Voto de Gilmar Mendes libera reeleição de Davi Alcolumbre e de Rodrigo Maia
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O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, levou ao plenário virtual da Corte, na madrugada desta sexta-feira, seu voto na ação sobre a sucessão interna do Congresso Nacional. Relator do processo, Gilmar construiu uma tese que ignora a proibição prevista na Constituição para autorizar a reeleição dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre.
Gilmar converteu em letra morta o parágrafo quarto do artigo 57 da Constituição. O texto constitucional não deixa margem para dúvidas. Nele, está escrito que o mandato dos membros das Mesas diretoras da Câmara e do Senado é de dois anos, "vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente."
Em seu voto, Gilmar reconhece "a possibilidade de as Casas do Congresso Nacional deliberarem sobre a matéria." Em condições normais, os congressistas só poderiam modificar o texto da Constituição por meio de uma emenda constitucional, que exige 308 votos na Câmara e 49 no Senado, em dois turnos de votação.
Entretanto, Gilmar anota em seu voto que a questão pode ser decidida de múltiplas maneiras, "seja por via regimental, por questão de ordem ou mediante qualquer outro meio de fixação de entendimento próprio à atividade parlamentar." Tudo muito mais singelo e menos solene do que uma emenda à Constituição.
Gilmar estabeleceu uma condição. Avalizou a manobra, "desde que observado, em qualquer caso, o limite de uma única reeleição ou recondução sucessiva ao mesmo cargo." Levado ao pé da letra, esse trecho do voto beneficiaria apenas Alcolumbre (DEM-AP). Maia (DEM-RJ) estaria proibido de se recandidatar, pois já comanda a Câmara por três mandatos sucessivos.
Para não deixar Maia ao relento, Gilmar injetou uma exceção dentro da outra. Escreveu que o limite de uma única reeleição só vale "a partir da próxima legislatura, resguardando-se, para aquela que se encontra em curso, a possibilidade de reeleição ou recondução, inclusive para o mesmo cargo." Quer dizer: se quiser, Maia poderá disputar a presidência da Câmara pela quarta vez.
Além de Gilmar, outros três ministros divulgaram seus votos no plenário virtual. Dias Toffoli e Alexandre de Moraes seguiram a posição do relator. Recém-indicado por Jair Bolsonaro, Kássio Nunes Marques votou em termos que se encaixam com os interesses do presidente da República. Seguiu o voto de Gilmar, mas discordou do trecho que abre uma brecha para a reeleição de Rodrigo Maia.
Para Nunes Marques, a regra segundo a qual os presidentes das duas Casas Legislativas só podem se reeleger uma vez deve entrar em vigor imediatamente. Assim, apenas Alcolumbre poderia se recandidatar. Maia estaria impedido. No Senado, Bolsonaro apoia a reeleição de Alcolumbre. Na Câmara, deseja trocar Maia pelo líder do centrão Arthur Lira (PP-AL).
No plenário virtual, os ministros apresentam seus votos por escrito. O julgamento começou nesta sexta-feira e terminará na próxima sexta. Qualquer ministro pode interromper a votação, levando o julgamento do ambiente virtual para o plenário físico do Supremo, onde os veredictos são precedidos da leitura dos votos e eventuais debates. Nessa hipótese, caberia ao presidente da Corte, Luiz Fux, marcar a data do julgamento.
O que está sendo julgado é uma ação movida pelo PTB. O partido de Roberto Jefferson pede ao Supremo que confirme o "teor literal" do parágrafo quarto do artigo 57 da Constituição. A legenda esclarece na petição inicial que deseja afastar "qualquer interpretação" dos regimentos internos da Câmara e do Senado "que busque ampliar o alcance do dispositivo constitucional."
Na contramão do pedido do PTB, Gilmar, Toffoli e Nunes Marques não se limitaram a ampliar a "interpretação" do texto constitucional. Na prática, legislaram. Fizeram isso ao permitir uma reeleição expressamente vedada pelo texto constitucional. Repetiram a dose ao criar o limite de uma única reeleição. Gilmar e Toffoli legislaram uma terceira vez, ao abrir a exceção para que Maia se recandidate.
Gilmar Mendes tratou o texto constitucional de 1988, aprovado nas pegadas da redemocratização do país, como um "resquício do autoritarismo" militar. "É importante considerar que, ao longo de toda a história republicana brasileira, nosso constitucionalismo destinou ao Poder Legislativo larga autonomia institucional", anotou o ministro. "Foi somente durante os anos de chumbo da ditadura militar, com a edição do Ato Institucional número 16, de 14 de outubro de 1969, que foi imposta a proibição à reeleição dos membros das Mesas das Casas Legislativas."
O ministro prosseguiu: "O objetivo do Ato Institucional número 16 foi justamente o de obstar o fortalecimento político dos parlamentares que ocupavam as presidências das Casas e, por conseguinte, aprofundar o processo de enfraquecimento institucional do Congresso Nacional, que se iniciara em 1964. A origem do art. 57, parágrafo 4º, da Constituição Federal, espelha os resquícios do autoritarismo que subtraía a independência do Parlamento."
Para Gilmar, "não deve ser meramente literal" a interpretação do texto constitucional. Ignorando o fato de que a Constituição foi reescrita por um Congresso Constituinte eleito com essa atribuição, o ministro construiu uma tese que submete o texto constitucional às conveniências da conjuntura política.
"O Parlamento deve gozar de espaço de conformação organizacional à altura dos desafios postos pela complexidade da dinâmica política", escreveu Gilmar. "Em verdade, determinadas conjunturas e situações de fato podem não apenas reputar desejável, como também exigir que a vedação à recondução para o mesmo cargo da Mesa possa ser objeto de exceção: desde que assim a Casa do Congresso Nacional repute necessário para fins de preservação de sua autonomia constitucional."
Gilmar se despiu da condição de guardião da Constituição, normalmente atribuída aos ministros da Suprema Corte. "Considerando que a proibição de reeleição não constitui preceito constitucional estruturante, não cabe ao Poder Judiciário interferir no alcance da referida norma", ele escreveu, realçando que não é atribuição do Supremo sindicar "atos normativos interna corporis."
Em português do asfalto: na opinião de Gilmar, a sucessão na Câmara e no Senado é assunto interno do Congresso. E o Supremo não deve meter o bedelho, exceto quando for necessário ajustar o brocardo. Dura lex, sed lex (a lei é dura, mas é a lei) se transforma em dura lex, sed látex (a lei é dura, mas estica).
Não foi a primeira vez que o Supremo esticou o texto constitucional, realçou Gilmar Mendes em seu voto. O ministro escreveu: "Relembra-se que, no plano federal, a jurisprudência atual do STF admite a recondução (ainda que para o mesmo cargo) às Mesas na passagem de uma legislatura para outra ou quando o primeiro mandato se deu de modo suplementar (mandato-tampão)."
Nas palavras de Gilmar, os precedentes "beiram o casuísmo". O ministro sustenta em seu voto que o Supremo "deve urgentemente evoluir nesses entendimentos." Ironicamente, a evolução recomendada pelo relator não é senão um lote de novos casuísmos.
Gilmar se absteve de citar, mas a primeira exceção, que permitiu a reeleição na virada de uma legislatura para outra, foi construída para beneficiar Ulysses Guimarães. Ele havia presidido a Câmara na legislatura que antecedeu a posse do Congresso Constituinte. E foi brindado com uma alteração do regimento interno, para permitir que presidisse a legislatura histórica.
Rodrigo Maia foi o beneficiário do segundo precedente mencionado por Gilmar. Ele exerceu uma presidência-tampão quando Eduardo Cunha, então mandachuva da Câmara, teve o mandato passado na lâmina. Na sequência, Maia obteve liberação do Supremo para disputar a recondução ao cargo na mesma legislatura.
Em fevereiro de 2019, Maia foi reconduzido pela terceira vez. Aproveitou o jeitinho criado para favorecer Ulysses. Se o novo casuísmo criado por Gilmar prevalecer no plenário virtual do Supremo, Maia ficará autorizado a pleitear sua quarta presidência subsequente.
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