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Josias de Souza

Inquérito sobre Abin não é uma mera gripezinha

Marcos Corrêa/PR
Imagem: Marcos Corrêa/PR

Colunista do UOL

19/12/2020 04h10

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Ao levar o caso da rachadinha para dentro do gabinete presidencial, Jair Bolsonaro pode ter pavimentado o seu próprio caminho para o inferno. A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, deu nome ao Tinhoso: "Crime de responsabilidade." Quando essa expressão é enganchada às colunas do Planalto, o inquilino do prédio tem razões para se preocupar.

Cármen Lúcia determinou ao procurador-geral Augusto Aras que saia de sua letargia para apurar a suspeita de que as engrenagens da Abin foram postas a serviço da defesa de Flávio Bolsonaro, o primogênito do presidente. A ministra enumerou os crimes que o episódio evoca: "Prevaricação, advocacia administrativa, violação de sigilo funcional, crime de responsabilidade e improbidade administrativa."

A encrenca começou a se formar em agosto, quando Bolsonaro promoveu em seu gabinete um encontro sobre a rachadinha. Presentes, além do anfitrião, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno; o diretor da Abin, delegado Alexandre Ramagem; e as advogadas de Flávio Bolsonaro —entre elas Luciana Pires.

A realização desse encontro é um fato incontroverso. Os participantes admitiram sua existência. Na reunião, a defesa de Flávio expôs a tese segundo a qual o filho do presidente sofrera uma devassa fiscal ilegal. Nessa versão, dados recolhidos à margem da lei nos arquivos da Receita teriam sido despejados no processo. O que poderia levar ao arquivamento do caso.

Em nota divulgada na ocasião, o general Heleno, superior hierárquico da Abin, sustentou que a Abin "não realizou qualquer ação decorrente [da reunião], por entender que, dentro das suas atribuições legais, não lhe competia qualquer providência a respeito do tema."

Na semana passada, a versão do general subiu no telhado. Notícia da revista Época revelou a existência de dois relatórios produzidos no âmbito da Abin para orientar a defesa de Flávio no seu esforço para anular o inquérito da rachadinha. O papelório foi enviado em setembro ao filho de Bolsonaro, que o repassou às suas advogadas.

O GSI do general Heleno reiterou o desmentido. Mas Luciana Pires, uma das advogadas do filho de Bolsonaro, atribuiu os relatórios ao delegado Alexandre Ramagem, o amigo dos Bolsonaro que dirige a Abin.

"Nenhuma orientação do Ramagem o Flávio seguiu ou me pediu para seguir", disse a doutora, numa entrevista veiculada nesta semana por Época. A pretexto de negar o uso das sugestões, a advogada confirmou a existência dos relatórios que o general Heleno diz que a Abin não produziu.

Com pouca disposição para procurar, o procurador-geral da República, Augusto Aras, dissera na semana passada que "o fato é grave." Mas acrescentou: "O que não temos é prova desses fatos. Para que [a notícia] seja convertida em inquérito, é preciso ter elementos judiciários."

Para desassossego do anti-procurador, Cármen Lúcia avaliou que os fatos graves impõem uma apuração. Até para que, se for o caso, sejam adotadas providências jurídicas. Diferentemente de Aras, a ministra acha que não se deve ignorar a seriedade do quadro.

A julgar pela ferocidade com que Bolsonaro voltou a atacar o pedaço da imprensa que o imprensa, o inquérito que está por vir não é uma gripezinha. Ao contrário. No início da semana, o presidente disse numa entrevista que Fabrício Queiroz, o operador de rachadinhas da primeira-família, "pagava conta minha também. Ele era de confiança." Faltou explicar a origem do dinheiro e definir "confiança".

O relacionamento monetário do presidente com seu amigo Queiroz é coisa anterior à chegada de Bolsonaro ao Planalto. Enquanto durar o mandato, o presidente não pode ser punido por eventuais crimes cometidos antes da posse.

A regra é invertida quando há crimes cometidos no curso do mandato presidencial. Daí a preocupação com a curiosidade de Cármen Lúcia sobre os desdobramentos da reunião que ocorreu no gabinete de Bolsonaro em agosto.