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Josias de Souza

Bolsonaro restaura o 'projeto centrão' de poder

                                Marcello Casal JrAgência Brasil
Imagem: Marcello Casal JrAgência Brasil

Colunista do UOL

01/02/2021 05h35

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Graças ao apoio recebido de Jair Bolsonaro, o deputado Arthur Lira e o senador Rodrigo Pacheco tornaram-se favoritos na disputa pelas presidências da Câmara e do Senado. A ascensão da dupla consolida dois fenômenos: o estilhaçamento do que se convencionou chamar de "nova política" e a restauração de um "projeto centrão de poder." Baseia-se numa prática antiga: a ocupação predatória do Orçamento público e da máquina estatal.

Filiado ao PP, o alagoano Lira é a principal liderança do centrão. Pertencente aos quadros do diretório mineiro do DEM, Pacheco tem as bênçãos do centrão. A política brasileira volta a viver o seu eterno terror pendular. O roteiro é invariável: os presidentes da República entram botando banca. E vão deslizando docemente para a grande vala comum do centrão. Sob Bolsonaro, o deslizamento começou no ano passado. A novidade é que o namoro evoluiu para o matrimônio —ou patrimônio.

A pretexto de assegurar a Bolsonaro a chamada "governabilidade", azeitou-se o toma lá, dá cá. Há na transação um déficit de interesse público. Sabe-se apenas que Bolsonaro deseja livrar-se do impeachment e blindar a família. Por isso, entrega verbas e cargos. Sem uma agenda nítida de políticas públicas sobre o balcão, a "governabilidade" torna-se um mafuá organizado para justificar novos e velhos cambalachos.

É natural que congressistas sejam portadores de demandas do seu eleitorado. Se estivesse realmente interessado em reformar os costumes, Bolsonaro disporia de uma vacina capaz de imunizá-lo contra alianças infecciosas. Bastaria comunicar aos apoiadores que, no seu governo, não se toma e não se dá nada que não possa ser exposto na vitrine. Fora disso, a retórica do combate à velha política não serve senão para abrir o caminho que conduz o governo a uma nova balbúrdia.

Bolsonaro achega-se a investigados

A trilha que levou ao apoio de Bolsonaro às candidaturas de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco começou a ser aberta no ano passado. O presidente achegou-se à banda investigada do Congresso. Expoente do centrão, o deputado Ricardo Barros (PP-PR) foi guindado ao posto de líder do governo na Câmara. O presidente deu de ombros para o fato de que o deputado é alvo de investigação do Ministério Público do Paraná. Apura-se o recebimento de R$ 5 milhões em propinas entre 2013 e 2014, quando era secretário de Indústria e Comércio do Paraná.

Ninguém em Brasília fez a concessão de um ponto de exclamação, pois o convívio de Bolsonaro com a suspeição já tinha virado parte da paisagem. Antes de se acertar com Ricardo Barros, Bolsonaro nomeara para o posto de líder do governo no Senado Fernando Bezerra (MDB-PE). Em pleno exercício da liderança, Bezerra recebeu a visita da Polícia Federal. Freguês da Lava Jato, o senador é acusado de desviar R$ 5,4 milhões em verbas públicas.

Hostilizados por Bolsonaro durante a campanha de 2018 e ao longo do primeiro ano do governo, os partidos do centrão e assemelhados foram integrados à gestão. Na prática, abriu-se espaço no governo para quem nunca saiu dele. Ricardo Barros, ex-companheiro de partido do próprio Bolsonaro no PP, foi líder dos governos FHC, Lula e Dilma. Serviu como ministro de Michel Temer. Fernando Bezerra, ex-filiado do PSB, é um antigo apoiador de Lula. Foi ministro de Dilma Rousseff.

Estreitam-se as relações por necessidade. Pendurados de ponta-cabeça nas manchetes, os Bolsonaro constataram que o distanciamento social que mantinham da banda suspeita do Congresso deixou de fazer sentido. Atingiu-se na política uma espécie de contaminação de rebanho. Bolsonaro e os seus filhos com mandato —Flávio, Eduardo e Carlos— viraram protagonistas de um noticiário em que as suspeitas de rachadinha nos gabinetes da família se misturam a transações eleitorais e imobiliárias fechadas em dinheiro vivo. Daí a busca de proteção.

Teatralização do novo vira rendição

Ironicamente, o centrão ganhou o formato que ostenta atualmente num contexto de disputa pela presidência da Câmara. Foi reagrupado em fevereiro de 2014 por Eduardo Cunha, então líder do MDB. Convertido em presidente da Câmara, Cunha cercou e asfixiou a gestão de Dilma Rousseff. Com a derrocada de Cunha, hoje em prisão domiciliar, imaginou-se que o centrão derreteria. Deu-se algo diferente.

As posições que o centrão colecionara na engrenagem governamental durante os governos petistas foram convenientemente mantidas no governo-tampão de Michel Temer. Crivado de acusações, Temer pagou com o déficit público a fatura apresentada pelo centrão para enterrar na Câmara duas denúncias criminais formuladas contra ele pela Procuradoria-Geral da República.

Egresso do PP, mesmo partido de Arthur Lira (pode me chamar de réu no STF), Bolsonaro usou a perversão política escancarada pela Lava Jato como mote eleitoral. Malhou Temer e o petismo. Esculachou o centrão. Toda campanha política tem um quê de teatro. Mas a teatralização da sucessão de 2018, por exagerada, dá à aliança de Bolsonaro com o pedaço bandalho do Legislativo uma aparência de rendição. Ou de comunhão.

Com 28 anos de vida parlamentar, Bolsonaro fez diante do eleitorado uma pose de político atípico. Voltou gradativamente ao normal, revelando-se um típico político brasileiro. Terceiriza cofres públicos ao centrão desde a prisão de Fabrício Queiroz, operador de rachadinhas da primeira-família.

Centrão recebe cofres bilionários

Bolsonaro entregou ao PP de Arthur Lira a presidência do FNDE, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Confiou a um apadrinhado do PL, partido controlado como um cartório pelo mensaleiro Valdemar Costa Neto, a Diretoria de Ações Educacionais do mesmo FNDE.

As ideias educacionais dos oligarcas do PP e do PL são desconhecidas. Mas o apetite das duas legendas por verbas públicas é de conhecimento geral, inclusive do Poder Judiciário. Isso não impediu Bolsonaro de acomodar os prepostos da suspeição na cúpula do FNDE, que tem orçamento anual de R$ 55 bilhões.

O centrão beliscou no ano passado cargos que controlam um pedaço do Orçamento estimado em R$ 78 bilhões anuais. Entre eles, além do FNDE, o Departamento Nacional de Obras Contra a Seca, entregue ao PP; e a Secretaria de Mobilidade Urbana do Ministério do Desenvolvimento Regional, confiada ao partido Republicanos.

As nomeações continuam sendo enviadas ao Diário Oficial. É dando que Bolsonaro espera receber proteção ao seu mandato. A expressão "é dando que se recebe" está gravada no DNA do centrão. Retirada da oração de São Francisco, passou a simbolizar a profana prática de exigir vantagens em troca de apoio político no Legislativo.

Página virada para trás

Quem lançou a moda foi o deputado Roberto Cardoso Alves (1927-1996), do PMDB de São Paulo. Robertão, como era chamado pelos amigos, inaugurou a facção franciscana do fisiologismo em março de 1988. Na época, o Congresso Constituinte discutia a prorrogação do mandato do então presidente José Sarney para cinco anos. Sarney deu e recebeu. A prática jamais saiu de moda.

Em três décadas, "governabilidade" virou um outro nome para corrupção. Serve de álibi para que políticos invadam as arcas do Estado. A anomalia infelicitou todos os governos desde a redemocratização. Sob Lula e Dilma, ganhou escala industrial. Imaginou-se que a Lava Jato representaria uma virada de página. Bolsonaro e seus novos aliados cuidam para que a página seja virada para trás. O centrão deixou de ser uma mosca na sopa. Tornou-se a própria sopa.